Bispo do
Rosário


FLUTUAÇÕES

Projeto Respiração
22ª edição
14 de setembro de 2017 a 31 de janeiro de 2018

Flutuações

Quando o lugar se faz tempo e o tempo se faz lugar

Como é difícil para mim mover no território de Arthur Bispo do Rosário. Sinto-me violentando sua obra. É difícil para um curador ter de admitir esse fato, já que o exercício de curadoria é um exercício de parceria. Quando me envolvo com uma obra, envolvo-me porque acredito que poderei de alguma maneira acrescentar algo – não para o entendimento (porque entender para mim é pouco, pois não acredito que haja algo a ser desvelado), mas para cerzir um devir que não corrompa a potência que motivou a invenção da obra e possa reafirmar, por meio da minha ação, sua potência. Portanto, em minha opinião, o curador trata de potências. Potências como pulsões germinadoras, não do que se explica mas do que faz pulsar, na ordem humana, a existência submetida à ordem do cosmos; puro devir da invenção potência.

O “incômodo” que a obra de Bispo do Rosário produz em mim é que me sinto distorcendo a integridade de sua obra ao fragmentá-la.  Sinto-me, de alguma maneira, cúmplice daquilo que condeno ao trazê-la para o Respiração. Um dia, foi decidido que melhor seria espalhá-la pelo mundo. Decidiu-se – talvez como estratégia de sobrevivência, facilidade de apresentação, estudo, arquivamento, apreensão ou pelo alto custo que implicaria apresentá-la toda reunida em exposições itinerantes – desfazer a maneira como ele a aglutinou em sua cela/célula e a maneira como ele conviveu nela e com ela. Graças a esse fato, ou apesar dele, parafraseando Merleau-Ponty, é que talvez a obra tenha sido preservada.[1] Mas ela certamente foi preservada também por sua potência, cuja coerência interna passou a exercer uma espécie de força gravitacional que, ao adensar-se em sentido, provoca identificação imediata de reconhecimento e passou a ser fonte de inspiração. Sua obra cria um sistema de saturação interna que é autorreferente e daí provém sua coerência não de uma subjetividade mas de uma singularidade que se permite ser um canal de sentido expressivo através do próprio corpo/vida, que passa a existir em função das necessidades expressivas da obra.

Sua cela, assim como uma célula, era uma unidade mínima a partir da qual foi criado um corpo complexo das diferentes “obras” (chamemos assim provisoriamente) que inventava. Na realidade, elas não eram e nem são obras individualizadas, como se pode crer em função de como elas passaram a ser apresentadas; ela é um todo. É um cosmos, cujo conjunto não é uma reunião, mas um todo indivisível; por isso célula, ou melhor, mônada. E não tem nenhuma motivação ou pretensão artística. Somos nós (os outros) que passamos a atribuir esse valor, já que arte é tudo aquilo que não tem utilidade, mas que tem valor para o nosso espírito. Ou, citando Cildo Meireles, “a arte é sempre uma espécie de inutilidade indispensável, decorrente daqueles que estão próximos da loucura e que têm a força e coragem para transformar o seu entorno”.[2]

Ricardo Aquino conta em texto […] no dia 5 de janeiro de 1939, [Arthur Bispo do Rosário], encaminhado de outro hospício, foi recolhido à Colônia Juliano Moreira onde ficou no pavilhão dos agitados. Lá viveu por um tempo, saiu, retornou algumas vezes, até que no início dos anos sessenta ele reingressou na colônia e não saiu até a sua morte, em 5 de julho de 1989: os últimos vinte e cinco anos de sua vida passaram-se na colônia.[3]

Essa informação biográfica é fundamental para entendermos que num dado momento de sua vida ele decidiu que ficaria confinado, tal como fez Yayoi Kusama anos depois, isolando-se do mundo na sua cela/célula, que era o território de sua liberdade. Bispo do Rosário decidiu confinar-se, desafiando todos os procedimentos clínicos de sua época (choques elétricos, lobotomias) porque se tornou intocável. Fez-se intocável pela coerência da construção de algo que não compreendiam, mas que desafiava impondo respeito juntamente com sua força física de ex-marinheiro e ex-lutador de boxe. Modificou seu entorno com a coragem dos que trazem consigo a certeza de transformarem suas vidas e seu entorno no que o destino lhes reservou. Sua cela/célula era o território da liberdade do devir futuro; livre de seu passado, que não era memória da doença, nem nostalgia, mas investimento na potência da vida. Onde ele era doente pela medicina, era sadiamente lúcido pela arte. Para Foucault, como nos indica Ricardo Aquino “a loucura é a ausência da obra”[4] ou, ainda, “Bispo do Rosário criou pela sua dinâmica de vida e saúde e não pela de sua doença. Conforme Deleuze (2004) sublinhou, quando o artista cria, ele clinica a si mesmo e ao mundo, que se enriquece com sua criação”.[5]

Acredito que Tarkovski contribui para esse pensamento quando afirma que a arte é a força espiritual capaz de ultrapassar a falta de espiritualidade de uma época, e eu acrescentaria, de um indivíduo também. A arte é capaz de detectar o distúrbio de uma sociedade ou de uma pessoa, provocada pela falta de espiritualidade, mas é também a força capaz de fornecer os meios espirituais para superá-los por ser a potência que nos permite estar plenamente na superfície imanente da densidade daquilo que permeia o mundo e que nos faz sentir totalmente presentes no instante dilatado da eternidade. Arte é o encontro com a superfície estendida que reveste tudo, onde não há dentro ou fora, e que nos faz pulsar em vida ao sermos dominados pela liberdade da invenção destemida, em que não há nem a parte nem o todo, mas quando cada fragmento traz consigo a totalidade: densidade substantiva da presença.[6] Quando somos ausência de nós e presença do mundo em nós.

Bispo do Rosário soube, como poucos, penetrar no universo de dissolvência da subjetividade para deixar que a fala do mundo se expressasse através dele. Ele percebeu que o lado de fora é mais perto do que supomos e que na realidade em arte não há um lado de fora e um lado de dentro. O que há é uma contiguidade contínua em que o indivíduo é a encarnação viva da fala do mundo. Esse é um estado de poética que poucos se permitem ou conseguem atingir e que muitos artistas almejam. É muito delicado falar desse assunto sem ser mal-entendido ou mal interpretado. É um estado de potência poética, em que é possível experimentar não o sublime, como nos indica Kant, porque não é um estado adjetivo, mas uma condição radicalmente substantiva: quando o lugar se faz tempo e o tempo se faz lugar, manifestando a experiência radical da totalidade do uno.

Foi essa a razão que me impulsionou a pensar que a obra de Arthur Bispo do Rosário seria adequada para o universo de Eva Klabin, mas não como havia ocorrido até então, no âmbito das edições passadas do Respiração. Ele é um artista morto. Não seria possível realizar uma intervenção especificamente concebida por ele para a casa museu, mas ao mesmo tempo, a simples menção dessa ideia produzia uma certeza atraente: criava o encantamento da evidência (a isso chamo de afirmação substantiva), que se basta por si só, como acontece com tudo que é coerente, mas, no entanto, a princípio, não há nada mais antagônico do que colocar lado a lado esses dois universos: o de Eva Klabin e o de Bispo do Rosário.

Os dois viveram vidas diametralmente opostas. O que produz então o encantamento dessa evidência? Mais coisas os separam do que os unem. O que nos faz refletir que a coerência nem sempre se dá pela aproximação de semelhanças ou pela máxima banal de que os opostos se atraem. Suas vidas eram muito diferentes. Os dois viveram na mesma época, atravessaram juntos grande parte do século XX. Eva Cecília Klabin nasceu em 1903 e faleceu em 1991. Arthur Bispo do Rosário nasceu em 1909 e faleceu em 1989. Pertenceram à mesma massa de tempo cronológico, mas cada um teve um universo totalmente diferente do outro. Socialmente, economicamente, animicamente eram opostos. Os dois colecionavam. Eva reuniu um dos acervos mais importantes de arte clássica do Brasil e deixou para a cidade do Rio de Janeiro como reconhecimento e gratidão pelo enriquecimento de sua família nas terras brasileiras. Bispo do Rosário colecionou a miséria e reuniu tudo que encontrava ou lhe davam para fazer um inventário das coisas do mundo, que seria apresentado na hora de sua morte como testemunho de sua passagem pela terra. Eva reuniu o que havia de precioso na sociedade e Bispo do Rosário reuniu o que era descartado, sem valor, mas que ele soube transformar em algo para além do descartável. Ambos tinham preocupação com a permanência além da morte e de reunir no lugar em que viveram o testemunho de suas existências.

Esse fato para mim é o fundamental. Ambos entenderam, cada um à sua maneira, a dimensão espiritual da existência e quiseram transformar o espaço que criaram para si como materializações de seus tempos: o tempo que se fez espaço através deles. Quando nos deslocamos no tempo, não chegamos somente a outro espaço, chegamos à presença de outro tempo. Os espaços são desvios no tempo. Sempre afirmei que a proposta do Respiração era a de criar desvios no tempo. O primeiro foi o de Eva Klabin, ao instaurar sua casa como museu. Os demais desvios (as intervenções dos artistas do Respiração) foram a maneira que encontrei de propor o deslocamento do tempo engessado por Eva Klabin para a criação de outros desvios do tempo, que permitissem outras percepções de seu legado de maneira a perpetuá-lo no tempo.

Arthur Bispo do Rosário, no entanto, ele próprio, criou o seu desvio no tempo ao instaurar sua cela/célula. Instaurou um desvio de tempo coeso e fechado em si mesmo. Não desejo compará-los para que não se tenha uma visão leviana de uma semelhança que não existia. O que pretendo é demonstrar que ambos criaram um compromisso com suas existências, que era a tradução de seus desejos de permanência e transcendência, mas que são irredutíveis entre si. E por isso mesmo, a única maneira que tinha de juntá-los num mesmo espaço, sem reduzir ou impor um ao outro, era o de produzir o encontro de dois espíritos; duas maneiras diferentes de ser no tempo. Permitir que os fragmentos da obra de Bispo do Rosário entrassem no universo de Eva Klabin, sem tocar nos seus objetos e na disposição deixada por ela para enfatizar a diferença e configurar o encontro de dois espíritos tempos dessemelhantes, mas que pertencem a uma realidade plural, cindida e conflitante de uma mesma realidade histórica.

O fato dos fragmentos da obra de Bispo do Rosário estarem suspensos – por isso Flutuações –, revela que a intenção curatorial foi a de fazer que ambos compartilhassem o mesmo espaço, conservando suas singularidades, ao mesmo tempo que introduz e enfatiza a obra desse artista no universo da história da arte pela sua potência avassaladora de insularidade. Ele é uma ilha solitária que flutua sobre o oceano da história e que se deixa levar pela correnteza profunda dos caminhos dos mares, que não tem margem, mas tem rumo. Sua obra estabelece sua própria rota a partir da potência da arte, não se deixando capturar, e conserva a mesma solidão profunda que a invenção da loucura reservou ao seu destino pessoal, ao alijá-lo da sociedade. Bispo do Rosário é um sobrevivente e sua obra é a expressão da insistência de sua sobrevivência como uma estratégia de salvação pessoal e da humanidade. Ele é o testemunho vivo e atento de seu tempo: um colecionador que conservou os objetos que seriam apresentados no seu momento final como redenção da sua vida e da vida de todos. Ele entendeu a solidão não como o lugar da introspecção arredia, mas, ao contrário, como o lugar em que o corpo se deixa atravessar pela duração e por isso aberto ao mundo através dos caminhos da arte como expressão. Ele não fala da sua dor porque não há autocomiseração. Ele fala de testemunho: de presença viva e atenta da vida na forma que lhe coube, criando um lugar a partir da percepção de seu tempo vida, deslocada da realidade imediata.

Marcio Doctors

[1] Resisto ao fato de que o conjunto original tenha sido fragmentado, mas guardo ainda a esperança de que um dia ela possa ser apresentada como o Merz de Kurt Schwitters.

[2] Declaração de Cildo Meireles, ao ganhar o Prêmio Velázquez, retirada de matéria do jornal O Estado de S. Paulo, 10/06/2008.

[3] AQUINO, Ricardo. Do pitoresco ao pontual: uma imagem-biográfica. In: LÁZARO, Wilson (org.). Bispo do Rosário. Rio de Janeiro: Réptil, 2012, p. 49.

[4] Ibid., p. 67.

[5] Idem.  A referência de Ricardo Aquino a Deleuze está em: DELEUZE, Gilles. A literatura e a vida. In: Crítica e clínica. 1ª reimpressão. São Paulo: 34, 2004, p.13.

[6] Essa talvez seja a única possibilidade de se perceber que, apesar de seu desmembramento, sua obra se mantém coesa por trazer em cada fragmento a reminiscência do todo; tal a potência interna que carrega consigo, como uma mônada.

Fotografia: Mario Grisolli