RESPIRANDO O RESPIRAÇÃO | SALA RENASCENÇA parte 2

A exposição virtual RESPIRANDO O RESPIRAÇÃO traz para o público as intervenções realizadas na Casa Museu Eva Klabin desde 2004, mas de uma forma original e bem distinta daquela apresentada usualmente ao visitante.

Além da experiencia ser digital, em função da situação vivida neste momento em que o museu se encontra temporariamente fechado por causa da Pandemia de Covid19, as intervenções não são apresentadas por edições, como quando realizadas na Casa Museu, mas sim de acordo com os ambientes onde aconteceram.

Esse deslocamento implica na visão não de um conjunto de intervenções de um mesmo artista em um determinado momento, mas na percepção da criação de diferentes artistas, em diferentes momentos, para um mesmo espaço.

E como o Projeto Respiração trata exatamente da possibilidade de novas leituras do espaço e da coleção da Casa Museu Eva Klabin, acreditamos que essa exposição virtual é capaz de oferecer uma nova forma de fruição deste projeto para o nosso público.

A cada módulo da exposição virtual RESPIRANDO O RESPIRAÇÃO, é escolhido um ambiente da casa museu. O de hoje é a Sala Renascença.

O PROJETO RESPIRAÇÃO

Concebido em 2004, o Projeto Respiração tem por objetivo criar intervenções de arte contemporânea na Casa Museu Eva Klabin, ideia surgida a partir da vontade de estabelecer outras camadas de leituras do acervo, que é basicamente de arte clássica.

Como lidar com um acervo muitas vezes engessado pela própria circunstância de sua criação, que foi a de deixar para a memória coletiva da sociedade brasileira uma coleção que é um resumo dos principais momentos da história da arte clássica, circunscrito em uma ambiência de casa-museu que reflete o gosto pessoal e os hábitos sociais de sua instituidora?

A resposta a esse desafio foi convidar artistas capazes de estabelecer outras camadas de leitura do acervo, criando fricções de linguagens entre a arte consagrada do passado, incorporada ao patrimônio, e as manifestações contemporâneas. Esses atritos são provocados não só pelo acervo ou pela história da arte, como também por outras questões específicas de uma situação de casa-museu. Essas vão desde o fato de as obras estarem expostas em um ambiente doméstico, em oposição a um ambiente tradicional de museu, até outras implicações mais sutis como a relação entre o que é pessoal e o que não é socializável, entre o espaço da intimidade de uma residência e o de um ambiente de um museu de representação coletiva.

O objetivo é que o artista convidado utilize como rastilho estético a sua leitura dos espaços vazios – dos espaços que existem entre as coisas – e que nos permitem perceber as coisas. É uma proposta de trabalhar com as zonas adormecidas, silenciosas e de descanso, que não são imediatamente perceptíveis, mas são o que garantem a nossa percepção do espaço. Dessa forma o artista está criando novas relações espaciais no acervo da casa museu, oxigenando, revitalizando e atualizando o sentido dessa coleção. Por isso: Respiração.

A SALA RENASCENÇA

A Sala Renascença é o salão mais amplo da casa. Neste ambiente, a coleção que cobre um período de quase cinquenta séculos, se apresenta com toda a sua exuberância. Seis vitrines exibem objetos da Ásia, do norte da África, da América pré-colombiana e da Europa, representando o encontro das várias culturas e civilizações dos quatro continentes. Um olhar atento pelo espaço percebe, imediatamente, a magnífica coleção de arte italiana dos períodos renascentista e barroco, que realça o esplendor do ambiente, onde peças de origens tão diversas convivem harmoniosamente.

Na pintura, é nítida a primazia dos artistas italianos, como no Retrato de Nicolaus Padavinus, obra de Tintoretto datada de 1589. Em relação aos temas religiosos, é evidente a predominância de madonas, uma das predileções da colecionadora. Um nicho especial e uma moldura barroca dourada foram reservados para a mais importante, Madona, Menino e São João Batista, obra atribuída ao círculo florentino de Sandro Botticelli.

Ao fundo, o retábulo florentino de madeira dourada e policromada, do século 16, abriga esculturas religiosas desse período nos cinco nichos forrados de veludo vermelho.

Por todo o salão, guarnecido de magníficos tapetes orientais, distribuem-se elegantes exemplares do mobiliário renascentista italiano: arcas, mesas, armários, cadeiras, bancos e poltronas forradas de veludo.

ANNA BELLA GEIGER | CIRCA | RESPIRAÇÃO 4

Ao defrontar-se com a proposta do Projeto Respiração, a artista intuiu que poderia trazer ao centro da cena deste ambiente tão impregnado por camadas de tempo a ideia de como construímos a memória do tempo: a Sala Renascença transformou-se em um sítio arqueológico. Um sítio arqueológico é um espaço construído por superposições de camadas de resíduos materiais de diversas culturas pertencentes a diferentes períodos da história da humanidade. Da mesma forma, o universo reunido por Eva Klabin é o resultado de uma coleção de obras de diferentes procedências – no tempo e no espaço – da história da cultura e da arte. A sensibilidade plástica de Anna Bella Geiger percebe as características do acervo da Casa Museu Eva Klabin e requalifica a abrangência significativa desse tipo de colecionismo ao nomear a instalação de Circa. Ao trabalhar com a ideia de circa, Anna Bella Geiger opta pelo sentido de imprecisão contido no significado dessa marcação de tempo. Nas palavras da artista: “circa denota que na marcação do tempo os fatos podem ser imprecisos, mas seus conteúdos são precisos.” Circa estabelece uma possibilidade de datação ampla que circunscreve o objeto no tempo, a partir de seu conteúdo.

Ao horizontalizar o tempo (circa) e verticalizar o espaço (sítio arqueológico), Anna Bella Geiger nos aproxima da percepção contemporânea de tempo e de espaço liberado pela era virtual. Na casa-museu de Eva Klabin, as obras respeitam uma ordenação determinada pela colecionadora, que decidiu agrupar, em um mesmo espaço, obras que pertencem a diferentes tempos e que procedem de diferentes culturas e regiões. Essa imprecisão tempo-espacial, que rompe a cronologia e a geografia esperadas, reveste e impregna os objetos da coleção da precisão do sentido estabelecido pela singularidade da opção da colecionadora em apresentá-los dessa forma. A imprecisão, neste caso, torna-se guardiã do sentido.

Fotos: Vicente de Mello e Wilton Montenegro | Vídeointervenção: Anna Bella Geiger | Modelos: Alice Geiger-Velho e Daniel Toledo


JOSÉ BECHARA | SAUDADE | RESPIRAÇÃO 9

Quando convidei Bechara para o Projeto Respiração foi por causa do seu projeto A casa, realizado  em Faxinal do Céu (PR), com curadoria de Agnaldo Farias e Fernando Bini.  Bechara foi convidado como pintor e saiu da experiência com escultor. Bechara não conseguiu pintar, mas transformou a casa que estava ocupando em um manifesto plástico visual em que os móveis da casa foram expelidos pelas janelas e portas. Através desse ato de revolta formal e sígnica, o artista conseguiu expandir e requalificar o sentido de sua obra.

Ao contrário do que se poderia imaginar de imediato há uma forte relação entre suas ”pinturas” feitas a partir de lonas de caminhão, peles de animais ou processos de oxidação, e o projeto A casa. “Desviar uma determinada matéria de seu destino” é a operação formal e conceitual que Bechara propõe quando lonas de caminhão abandonam a função à qual estavam destinadas e passam a operar no registro da arte como passagem do tempo; ou quando a casa, feita para acolher, se revolta contra seu destino e expele para fora o mobiliário, subvertendo a relação continente/conteúdo.
Da mesma maneira, a proposta curatorial do Projeto Respiração é buscar desvios a partir de uma situação de casa-museu de colecionador. A intervenção proposta por Bechara é resultado de uma conversa em que comentei que tinha a sensação de que Eva Klabin não havia morrido, mas que um belo dia decidiu ir embora, bateu a porta e deixou a casa tal como estava. Bechara, então, imaginou que a casa sentia saudade de sua antiga proprietária. Paredes, portais, escadas e armários embutidos se multiplicariam e preencheriam o vazio deixado por ela. Através da intervenção Saudade, é como se todos os espaços da casa ficassem prenhes de vida própria. Tudo passa a reverberar na imaginação fabular e a casa adquire autonomia. Os objetos adquirem vida. O artista cria uma fábula barroca em que o mundo fala. O resultado, uma estética do excesso. O método, a metamorfose.

Fotos: Zeka Araújo


JOSÉ DAMASCENO | CINEMATOGRAMA | RESPIRAÇÃO 1

A sensação primeira da intervenção é de uma força avassaladora que capta a nossa percepção porque explicita os diferentes ambientes da casa como pura imagem. É como se, com as obras de Damasceno, passássemos a percorrer a casa-museu como se estivéssemos num cinema sem filme. O artista transforma a Casa Museu Eva Klabin em cinema. Desfaz através de sua intervenção o que poderia na casa induzir a um set de filmagem ou cenários de uma peça, achatando a profundidade do espaço em planos/imagens, ao criar superfícies imagéticas que se insurgem como aparições.
Esse é o enigma desvendado: o que conta para sua obra não é o objeto em si, mas a imagem como potência virtual e atual, criando um campo pulsante de real que nos oferece o mistério como transparência na imanência da matéria que se transforma a todo instante; que se faz sempre presente: ontem, hoje, amanhã.

Fotos: Vicente de Mello


ENRICA BERNARDELLI | CONCERTO DE PÁLPEBRAS | RESPIRAÇÃO 14

Concerto de pálpebras é uma cena muda envolta por sons de pássaro, cujo canto nos puxa de volta para a realidade imediata da vida, indicando-nos que dentro e fora não existe na arte. Por isso as tênues cortinas de filó, que criou na Sala Renascença, que separa o museu do próprio museu, assim como as pálpebras, cujo movimento nos leva para dentro e para fora de nós mesmos, nos lembram da delicada e sutil separação entre uma arte e uma vida pulsante e uma vida adormecida no cotidiano. A artista se debruça sobre o abismo do futuro, com a convicção do mistério e do desconhecido, indicando-nos um tempo que não se deixa pressionar pelo medo do imponderável, mas que o deseja como motor da forma em mutação; metamorfose do tempo das sensações

Vídeo: Enrica Bernardelli


ANNA MARIA MAIOLINO | é | RESPIRAÇÃO 12

O que Anna Maria Maiolino busca explicitar por meio de sua intervenção é, no Projeto Respiração, é a arte como energia criadora. Maiolino introduz na sua video instalação, através de uma figura feminina de vermelho que caminha silenciosamente levando adiante a chama de Prometeu, o desejo criativo da paixão e do conhecimento. A artista projeta nessa figura a força da resistência e da permanência da arte, mas, ao mesmo tempo, habita a casa com sons que trazem de volta a vida nas suas múltiplas dimensões, que a casa, ao tornar-se museu, silenciou.

Trecho da performance “é”. Performer: Sandra Urizzi


MARCOS CHAVES | I ONLY HAVE EYES FOR YOU | RESPIRAÇÃO 17

Marcos Chaves aproximou-se da Casa Museu Eva Klabin como se quisesse libertá-la da estranheza provocada pela clausura das camadas de tempo que foram se superpondo ao longo dos anos, pelo acumulo de objetos de arte de várias épocas e pelo número de anos que a proprietária está ausente desta residência, atribuindo-lhe um ar de presença ausente que pesa no imaginário daqueles que aqui entram. O artista desejou primeiro dar leveza a casa-museu, fazendo uma espécie de lavagem espiritual, o que, de certa maneira, é uma das intenções do Projeto Respiração, quando propõe oxigenar a casa ao presenteá-la com a arte de nosso tempo, introduzindo outro ar capaz de lhe dar nova vida.

Vídeo: Mario Grisolli


MARIA NEPOMUCENO | PULSO | RESPIRAÇÃO 15

Maria Nepomuceno é solar. Para ela o fazer tátil e artesanal é fundamental. É esse elemento que faz sua obra pulsar. Por isso denominou Pulso sua intervenção, referindo-se tanto ao pulso como uma parte do corpo humano importante no movimento do fazer das mãos, como também a pulso de pulsação das forças do universo. Ela parte de estruturas simples – a linha (as cordas) e o ponto (as miçangas) que, costuradas em forma de espiral, permitem que ela construa planos, que se desdobram em superfícies topológicas, que tendem à expansão infinita. Há no seu trabalho um movimento de contração e expansão. A contração é o próprio fazer que delimita o espaço e propicia a expansão, que é o território que está aquém e além do seu fazer e que se remete aos fluxos da natureza e da cultura. A artista busca, a partir de uma estrutura orgânica, uma forma que se metamorfoseia para dar conta dos fluxos da natureza e da cultura do nosso entorno, dando expressividade à questão do que é local e do que é global.

Fotos: Mario Grisolli


ERNESTO NETO | CITOPLASMA E ORGANÓIDES | RESPIRAÇÃO 2

O que é poderoso na obra de Ernesto Neto é o fato de não ser suficiente falar de um trabalho seu especificamente. Há nele uma potência abrangente que nos move a pensar a totalidade de sua obra. A coerência de Neto é seu comprometimento e sua atenção com a atualidade de seu tempo e com a energia afetiva que é capaz de extrair daí. Ele propõe que sua obra seja uma espécie de epiderme do mundo. Trabalha no limite das terminações nervosas da sociedade, ao estabelecer um campo de visualidade sensível que envolve a realidade ao explicitar conteúdo e continente como unidades reversíveis e intercambiantes de uma mesma superfície; de uma mesma realidade topológica.

Para o projeto Respiração concebeu a intervenção Citoplasma e organoides, que definiu desta maneira: “é como se a casa fosse o citoplasma e eu estivesse colocando organoides nela”. Em outras palavras, a casa e a coleção passaram a ter a função de um espaço intracelular, que é o espaço entre a membrana plasmática e o envoltório nuclear, que é preenchido por um fluido onde ficam suspensos os organóides, que seriam as obras propriamente ditas que o artista criou para esse espaço.

Fotos: Vicente de Mello


RUI CHAFES | NOCTURNO | RESPIRAÇÃO 7

O imaginário insólito da forma nas esculturas de Rui Chafes, assim como o uso da palavra nos seus títulos suscitam no espectador uma identificação silenciosa e imediata. Tanto os títulos quanto as formas extraordinárias de suas esculturas são como aparições que traduzem o espírito de nossa época por uma identificação que não é possível de ser enunciada. A identificação com as suas obras se dá porque tanto os seus títulos, como, por exemplo, A História da Minha Alma I e II, quanto as suas imagens são tratados como fragmentos. Isto é, são como recortes de questões maiores do que nós, mas que nos falam de forma direta, como se estivessem sendo destinadas especificamente para nós. É uma capacidade de síntese poderosa – uma quase epifania – capaz de criar imagens que resumem a percepção do sentido de nossa época, sem que consigamos especificar exatamente o porquê.

Fotos: Vicente de Mello