AS MADONAS DA COLEÇÃO EVA KLABIN

A Exposição Virtual aqui apresentada é muito especial porque trata de um dos temas da predileção da colecionadora Eva Klabin: as Madonas.

No acervo da Casa Museu Eva Klabin, um ponto que chama a atenção é a presença de inúmeras obras com a tradicional representação da Virgem Maria com o Menino Jesus, expressa em pinturas e esculturas.

A paixão de Eva por esse tema é, muitas vezes, associada a uma circunstância da sua vida: a de não ter tido filhos. Mas para além disso, é possível buscar outros significados na aquisição por parte da colecionadora de obras com essa iconografia.

A Exposição Virtual oferece ao visitante a oportunidade de ver recortes da coleção de uma forma única, muito diferente da visão de conjunto oferecida no circuito expositivo da Casa Museu. Durante o período de quarentena, em que o museu está fechado, estamos trabalhando justamente com essa oportunidade, de surpreender o público com temas e objetos em destaque.

A MATERNIDADE COMO ORIGEM

Maternidade como origem
Marcio Doctors

Por razões óbvias da tradição na história da arte e pelas características da coleção Eva Klabin, a Renascença italiana e seus desdobramentos são o ponto alto do acervo. Mas há uma particularidade nas aquisições desse período: é o fato de praticamente todas as obras serem de madonas.

Para aqueles que visitam a casa-museu, não passa desapercebida a presença ostensiva da maternidade, que, além de um tema central da Renascença, é também um tema da coleção.

O humanismo que o Renascimento inaugura consiste em um investimento no sujeito como o motor da história. Ao colocá-lo no centro da cena, inventa a perspectiva albertiniana, que estabelece um código ordenador do espaço capaz de criar um sentido de unidade que determina uma objetividade da visão e da ação. Os cânones da perspectiva clássica são da mesma ordem que os limites que a maternidade impõe na orientação da vida. São forças que centram o sujeito na cena do mundo, fornecendo-lhe os instrumentos afetivos e de análise necessários para lidar com a realidade que o circunda.

A interpretação do destino das madonas na coleção Eva Klabin é que elas são o afeto que acolhe a vida. O momento mágico do nascimento do Menino Jesus, que para uma pessoa de ascendência cultural judaica tem pouca significação, reforça a ideia de que a colecionadora buscava, na iconografia desse período, a metáfora da maternidade e do afeto como origem da vida. Na interseção entre os tempos da Renascença e de sua vida pessoal, a colecionadora reforça o destino histórico das madonas quando adquire essas obras e as encerra no círculo mágico de sua coleção como símbolo da gestação que não experimentou; como metáfora da origem da vida. Soma-se, assim, à arte, a maternidade como uma das origens da ordem humana – a origem afetiva – sem a qual não há vida. Ao destacar, na Renascença, a maternidade, a colecionadora está nos indicando que essa é uma das três origens que persegue na formação do sentido de sua coleção.

[Trecho do texto O espelho e o relógio, de Marcio Doctors]

Botticelli (1444 – 1510), atribuição
Madona com Menino e São João Batista
Florença, Itália, 1490 – 1500
Óleo sobre madeira, 96,0 x 60,0 cm

Nossa Senhora é figurada sentada num trono com alto encosto, carregando o menino despido no colo, tendo São João Batista criança ao seu lado direito. O Menino Jesus abençoando com a mão direita, dirige o seu olhar ao pequeno São João, que o fita juntando as mãos. No fundo, abre-se uma ampla paisagem com esbeltas árvores e montanhas. A imagem de Nossa Senhora com o Menino e São João, protetor da cidade de Florença, é característica da arte toscana. Atrás da cena do diálogo entre os personagens infantis escondem-se quase sempre alusões de tipo moral e teológico, que estimulavam a meditação e a devoção dos observadores. Neste caso, a invenção do pintor de encobrir as mãos do Menino com o véu da mãe, à maneira dos sacerdotes antigos oferecendo um sacrifício, poderia se relacionar ao conceito de Jesus Cristo perfeito sacerdote, expresso na Carta de São Paulo aos Judeus, destacando a sua humanidade e o seu sacrifício que permite aos homens entrar no santuário celeste e ultrapassar a antiga lei mosaica, simbolizada pelo Batista. A presença de elevada reflexão teológica num quadro para a devoção privada não deve surpreender por se tratar de uma obra pintada em finais do século XV, quando a sociedade florentina era estigmatizada pela veemente oratória religiosa do frade dominicano Girolamo Savonarola.


Bernardo Strozzi (1581 – 1644)
A Sagrada Família e São João Batista criança
Genova, Itália, 1620 – 1625
Óleo sobre tela, 112,0 x 87,0 cm.

Entre o fim do século XVI e as primeiras décadas do XVII, a grande riqueza acumulada pelos banqueiros genoveses, em grande parte procedente dos créditos concedidos para financiar a política expansionista da monarquia espanhola e a conquista colonial da América, bem como a atividade comercial do porto mais importante do Mar Mediterrâneo, tornaram Genova um dos maiores mercados artísticos da Europa, atraindo artífices da Flandres, da Espanha e de várias regiões da Itália.

Depois da formação com Pietro Sorri, mestre de Siena ativo em Genova, a partir de 1608-10, Bernardo Strozzi começou a produção como artista independente para sustentar a mãe e a irmã, ao abandonar o mosteiro da ordem dos frades capuchos em que entrara.

A raridade das pinturas datadas e a escassa documentação existente tornam problemática a datação certa da produção desse grande artista. O biografo Soprani menciona genericamente muitos quadros devocionais para as residências de colecionadores realizados pelo pintor nos primeiros anos da sua carreira, entre os quais poderia ser incluida a tela da Casa Museu Eva Klabin. A composição mostra um seguro domínio dos antecedentes de Rafael e de Perino del Vaga, na disposição piramidal e no recuo dos planos, definindo claramente a hierarquia entre as figuras: a Virgem e o Menino são o fulcro da cena, quase se oferecendo com determinação ao olhar do espectador. Os outros dois personagens comentam humildemente, cada um conforme o seu caráter, o triunfo da criança divina.


Antoniazzo Romano (1430 – 1508/12), atribuição
Madona com Menino
Úmbria, Itália, final do séc. XV início do séc. XVI
Óleo sobre madeira, 34,0 cm x 23,5 cm.

Nossa Senhora, de meia figura, vestida de vermelho, com manto azul bordado e ornado por estrela em ouro, abraça o Menino em pé e com a mão direita levanta o véu que o envolve. Em cima, há uma inscrição em caracteres latinos cursivos com abreviações: cujo texto é o seguinte:
“Ave Dei genitrix Virgo immaculata/ Gaude Virgo pro salute data/ Ave Virgo quae portasti Dominum in utero/ Gaude quae lactasti Iesum in praesepio.”
(Salve Virgem imaculada mãe de Deus. Regozija-te Virgem pela salvação que deste. Salve Virgem que carregaste o Senhor no teu útero. Regozija-te, tu que amamentaste Jesus no estábulo).

A imagem e os ingênuos versos destacam o papel da Virgem Maria no mistério da encarnação de Jesus Cristo em função da salvação da humanidade.
Ao que tudo indica, o quadro da Casa Museu Eva Klabin pode ter sido pintado entre a última década do século XV e a primeira do século XVI, entre Viterbo e Perugia, sendo um importante documento da arte do Renascimento naquela área.


Benedetto da Maiano (1442 – 1497)
Virgem com Menino
Florença, Itália, 1487-1493
Terracota policromada, 90,0 x 66,0 x 19,0 cm.

A figura de Nossa Senhora foi colocada num suporte circular de madeira pintada de azul, para adapta-la à moldura. Não há informação de quando foi realizado o conjunto formado por elementos evidentemente procedentes de diversa origem: quase certamente a adaptação surgiu em época recente, em função da colocação das obras no mercado de arte.

A Virgem, em meia figura, carrega no colo o Menino Jesus. Encosta a cabeça à do filho e cobre-o com a mão direita acomodando-lhe os panos. As duas figuras olham-se reciprocamente com ternura.

O relevo da Casa Museu Eva Klabin é idêntico àquele em mármore colocado na luneta do arco do sepulcro de Filippo Strozzi na igreja de Santa Maria Novella em Florença, obra de Benedetto da Maiano, encomendada em 1487 e acabada em 1493, ou 1497, segundo outros estudiosos. Uma versão em mármore da composição encontra-se na Igreja dos santos Filippo e Giacomo em Scarperia, perto de Florença. O tema da maternidade é interpretado com viva e moderna sensibilidade psicológica, típica da arte florentina do fim do século XV, que Benedetto comparte com outros grandes escultores contemporâneos como Verrocchio e Antonio Rossellino.

A obra relaciona-se sem dúvida aos dois relevos em mármore mencionados, mas ainda fica em aberto a questão de determinar se pode ser considerada uma maquete preparatória ou uma réplica realizada a partir dele. Só um estudo mais aprofundado da peça poderá responder a esta pergunta. No entanto, sabe-se que a prática de realizar modelos de terracota, de tamanho igual ao da obra, não era excepcional no ateliê de Benedetto da Maiano.


Donatello (1386 – 1466), atribuição
Madona com Menino
Siena, Itália, 1448 – 1455
Relevo em estuque policromado, 84,0 x 60,0 cm

O  relevo de forma retangular tem uma moldura em forma de edícula com pilastras coríntias estriadas e entablamento reto sem frontão. À esquerda a Virgem, meia figura de perfil, de mãos juntas adorando o menino. Está vestida com um manto azul, o véu e a túnica são brancos. As orlas das mangas e do decote, assim como o véu são enfeitados por um motivo horizontal punçoado e dourado. O mesmo repete-se nas auréolas das duas figuras. O menino senta-se numa pequena cadeira de criança, sobre uma almofadinha e toca as mãos da mãe com a direita. As fraldas atam-no até as axilas. Em cima, dos lados, dois anjinhos com cabeças e asas. A composição é conhecida por vários exemplares, no Victoria and Albert Museum de Londres, no Bode Museum de Berlim, no Museo Bardini em Florença.


Lorenzo Ghiberti (1378 – 1455)
Madona com Menino
Florença, Itália, primeira metade do séc. XV
Estuque moldado e policromado, 70,0 x 54,0 x 22,0 cm

Os relevos representando a meia figura de Nossa Senhora com o Menino, e destinados ao ambiente doméstico e à devoção familiar, são algo característico da escultura florentina do século XV. A figura de Maria amamentando o pequeno Jesus, ou carregando o menino tendo um passarinho ou uma romã na mão, ou adormecido, deveria servir como exemplo moral para a família, ajudando as crianças a cultivarem desde os primeiros anos a devoção e o respeito para com os pais e a comunidade. Os primeiros exemplos, realizados em terracota pintada, surgiram, ao que parece, no ateliê de Lorenzo Ghiberti (1378 –1455) no tempo em que ele trabalhava na primeira porta em bronze do Batistério de Florença (1401 –1424). Estes eram peças únicas, mas antes de 1427, Ghiberti modelou um relevo que serviu como molde para realizar reproduções em estuque pintado.

O relevo da Casa Museu Eva Klabin está entre os mais belos exemplos da série, não sendo inferior pela qualidade e pelo acabamento dos detalhes a outros existentes, por exemplo, na Pieve de Sesto Fiorentino e no Cleveland Art Museum. A peça não possui fundo ou moldura, mas se apóia sobre filete moldado como parte do conjunto, sendo claramente pensada para ser colocada sobre uma estante e encostada numa parede.

A obra revela o estilo da plena maturidade de Ghiberti nos anos em que recebeu a encomenda da segunda porta do Batistério florentino, que Michelangelo definiu como “Porta do Paraíso”. Sem renunciar à elegância da linha e à ternura na expressão dos sentimentos, herança de sua formação na arte do gótico tardio, o escultor imprimiu à sua obra uma nova solenidade e uma dignidade que refletem a cultura humanista e o estudo dos exemplos clássicos, presentes nas obras de Donatello e de Masaccio.


Adriaen Isenbrant (c. 1490 – 1551)
Madona com Menino e paisagem – Repouso durante a fuga para o Egito
Bruges, Flandres, c. 1530.
Óleo sobre madeira, 106,0 x 75,0 cm

Nossa Senhora, vestida de vermelho e de verde escuro, senta-se numa grande rocha como num trono apoiando-se a uma vultosa árvore. Segura o Menino Jesus nu no colo e lhe oferece, com a mão direita um pequeno cacho de uvas, símbolo do sacrifício da cruz. Atrás dela, abre-se ampla paisagem com castelos, casebres, vilarejos e campos cultivados, em que aparecem pequenos animais, entre os quais se nota um macaco. O tema do papel redentor de Jesus e do seu destino é apresentado numa atmosfera de idílio campestre que confere humilde ternura à cena familiar destacando a carinhosa relação entre a jovem mãe, trajada singelamente, de longos cabelos loiros soltos nos ombros, e a criança cujo corpo grácil e nu evidencia sua condição indefesa e precária. Por outro lado, a pose do Menino sentado, que parece abençoar ao receber o singelo presente da mãe, lembra a majestade da criança divina que passa desapercebida aos olhos do mundo.


Jan Gossaert dito Mabuse (1478 – 1533)
Madona com Menino e cerejas
Holanda, c. 1520
Óleo sobre tela, 31,0 x 22,8 cm.

No quadro da Casa Museu Eva Klabin o ambiente é íntimo e as figuras emergem da sombra. As vestimentas da Nossa Senhora possuem cores harmoniosas e quentes acentuando a ternura do olhar da mãe e a sua atitude afetuosa e preocupada para com a criança. Na figura feminina transparece o eco de Lucas van Leyden, mas a composição parece derivada das gravuras de Dürer pela intensidade dos sentimentos. Especialmente pela escolha do momento em que a Madona levantando o véu quase parece consciente do futuro sacrifício da criança apoiada num plano de mármore sugerindo uma mesa de altar, sobre o qual brilham, como gotas de sangue vivo, algumas cerejas vermelhas. A pose do Menino de complexão atlética esperneando indica que o pintor teve contato com as idéias de Michelangelo e de Rafael na Itália.


Michele Tosini (1503 – 1577), atribuição
Madona com o Menino e São João criança
Florença, Itália, c. 1570
Óleo sobre madeira, 50,5 x 41,5 cm

Nossa Senhora é representada sentada no chão no meio de uma paisagem. Abrindo os braços e as mãos em ato de adoração, dirige o olhar ao Menino Jesus, que, despido, sentado sobre o manto da mãe, à sua direita, carrega a esfera do mundo. À esquerda de Maria, o pequeno São João carrega uma cruz feita de cana e olha para a criança divina. A imagem sugere poeticamente a pobreza dos personagens sagrados no meio de uma natureza envolvida em atmosfera misteriosa de idílio e de silêncio, em contraste com a majestade de Cristo, senhor do mundo. O jogo de olhares entre as figuras alude à salvação da humanidade, por meio do sacrifício da cruz.


Mestre das Madonas dos Meninos Travessos, atribuição
Madona do Menino travesso
Florença, Itália, 1525 – 1535
Terracota moldada e policromada, 55,0 x 30,0 x 22,0 cm.

Mestre dos Meninos Travessos é o nome convencional dado pelos estudiosos a um escultor anônimo, certamente toscano, influenciado por Verrocchio e por Antonio Rossellino, que realizou um grupo de estatuetas em terracota pintada, com características estilísticas coerentes, sendo que a mais comum é a presença de um ou mais meninos em atitude travessa. Grupos semelhantes existem no Altes Museum de Berlim, no Fogg Art Museum de Cambridge, em Massachussets, e no Victoria and Albert Museum de Londres. Alguns exemplares possuem duas ou três figuras de crianças, ligando-se à alegoria da virtude cristã da Caridade. Outras, com apenas uma criança, representam Nossa Senhora com o Menino. Em algumas, o Menino, numa atitude alegre e marota, descobre o peito da mãe ocupada em ler um livro. O exemplar da Casa Museu Eva Klabin pertence exatamente a esse tipo, mas lhe falta o livro na mão direita, o que torna a pose menos natural.


Jan Provost (1465 – 1529)
Madona, Menino e dois Anjos
Bruges, Flandres, 1510 – 1520
Óleo sobre madeira, 56,5 x 50,0 cm.

Em 1494, Jan Provost estabeleceu-se em Bruges, maior centro de produção da pintura e da tapeçaria de Flandres, travando relações com a arte de Gerard David. As obras de Jan Provost são numerosas e representam um dos últimos momentos vitais da tradição flamenga, iniciada por Jan Van Eyck e por Rogier Van der Weyden antes da crise provocada pela assimilação das propostas renascentistas e maneiristas chegadas da Itália.

No painel da Casa Museu Eva Klabin, Nossa Senhora, vestida de vermelho e de azul, senta-se na frente de um alto encosto coberto por um pano verde, com uma coluna de mármore colorido, fechando a paisagem do fundo. A Madona carrega no colo o Menino Jesus, meio envolvido nas fraldas, que se inclina para tocar um livro apresentado-lhe por dois anjos. As vestes e as asas das duas criaturas são pintadas em cores vivas e preciosas. A imagem lembra o destino do Redentor que é o de realizar as profecias contidas nos escritos revelados por Deus ao longo da história do povo judeu.