Lilian
Zaremba
EVASION
11th edition | june 26 – august 15, 2010
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ROTEIROS IMAGINÁRIOS
O Projeto Respiração é uma espécie de processo de escavação ao contrário da casa, da coleção e da vida de Eva Klabin. Em vez de serem retiradas camadas de sentido para reconstruir a “ficção” de um passado que desconhecemos e que pertenceria às memórias da colecionadora, artistas são convidados a escavarem o presente e a acrescentarem camadas de sentido que construam uma “ficção” de futuro para o museu. Entendo o legado de Eva Klabin como sendo a criação de um mito atemporal, capaz de criar uma presença tão forte no imaginário das pessoas que tem a potência de alimentar o presente. E o Projeto Respiração surge como o pretexto [pré-texto] poético que contribui para liberar a imaginação dos artistas em relação ao outro distante: o murmúrio de uma personalidade que silenciou a si mesma nos objetos que a circundavam, emergindo ela mesma como um objeto de memória.
Quem é Eva Klabin? O que é esta coleção?
Deslocamentos incessantes que encontram respostas no impulso de perguntar. É nas indagações que se dá o encontro entre o sentido desencadeado pela colecionadora, que se construiu a partir do aprisionamento de obras de arte, e o sentido do artista, que aqui se vê diante da construção de uma vida e de uma coleção que agora lhes são entregues como objetos do imaginário. Corrente entrelaçada de desejos, pensamentos e memórias: filme mudo da existência; literatura sem palavras.
Eva: guardiã de imagens-tempo, que, ao apresentar o real como real e imaginário, retém o tempo da imagem no tempo da realidade de sua vida.
Projeto Respiração: território de errância, em que a ação / arte interfere na realidade da coleção, ao libertar as obras e a colecionadora da clausura do tempo e ao apresentar o imaginário como imaginário e real.
Realidade e imaginação conservam na casa-museu, como no cinema, a latência de um na manifestação do outro. Foi essa percepção que levou Daniela Thomas e Lilian Zaremba a costurarem realidade e imaginação através de um jogo de presenças e ausências, criando roteiros imaginários: Substituições e Evasão.
Há uma forte aproximação entre as palavras e as frases, escolhidas por Lilian Zaremba, da única gravação da voz de Eva deixada no final de sua vida, que preenchem o espaço da Sala Verde, e a ideia de substituir obras do acervo por sua descrição falada na ação de Daniela Thomas. Personalidade e coleção são interpeladas pelas intervenções das artistas. Nas duas, uma constelação de palavras pede a costura de uma paisagem mental que vai sendo desenhada à medida que é ouvida. Ao criarem lacunas que deverão ser completadas pela singularidade de cada um, sou levado a me perguntar sobre o sentido – a direção – da comunicação e da irredutibilidade entre as palavras e as imagens. Imagens e palavras são de origens e destinos distintos: quem as pode juntar é a imaginação e nunca a pretensa verdade que ambicionam.
O que faz ver são as palavras e não as imagens. Nas palavras há sobras; nas imagens, captura de presenças. As palavras existem porque esquecemos; as imagens existem porque queremos lembrar. Tanto uma como outra criam lacunas, as palavras porque para existirem precisam da generalização, que é uma seleção por abandono das diferenças; e as imagens porque necessitam do fragmento, que é um recorte do fluxo da diferenciação / tempo, imposto pelo sentido de totalidade que a aparição da presença estabelece. Ao sequestrar imagens da coleção, Daniela nos devolve suas presenças, nos incitando a vê-las por meio das palavras. Da mesma forma, Lílian presentifica na voz de Eva Klabin a captura de sua presença, tal como numa emissão radiofônica, fazendo que habite de novo o espaço da casa, que o conceito de museu sequestrou. Ambas invertem intercambiando a lógica e o mecanismo das palavras e das imagens, ao criarem paisagens imaginárias através do som.
O que diferencia a proposta de uma e de outra é que Daniela Thomas trabalha com a ideia de coleção e Lilian Zaremba, com a ideia de colecionadora.
[Substituições] Daniela Thomas propõe que imaginemos a obra na sua ausência. Sugere uma aproximação do acervo [a aproximação da escuta], solicitando atenção e concentração dirigidas que provocam um movimento de internalização, tanto de quem descreve os objetos de arte quanto de quem escuta a descrição. Ela evidencia que o sentido de uma obra se completa pela ação de quem a contempla. Sem o outro não há obra de arte. Ao polarizar esse pensamento, indica-nos que a arte é um espaço de acolhimento de uma temporalidade outra capaz de se contrapor à fragmentação do tempo dispersivo da atualidade, oferecendo um tempo concentrado e atento. Assim como Eva Klabin retira de circulação as obras do mercado para aprisioná-las na sua coleção, Daniela Thomas retira algumas obras do museu para prender a nossa atenção, preenchendo o espaço-visão da casa com o murmúrio-tempo das vozes.
[Evasão] Lilian Zaremba nos convida a entrar na Sala Verde, o espaço de transição entre o público e o privado, entre o auditório da Fundação e os aposentos de Eva Klabin. Escolheu essa sala por ser uma passagem entre dois mundos – a realidade e a imaginação – para evidenciar que um está contido no outro. A realidade da colecionadora que viveu nesta casa e a imaginação que envolve a personagem em que ela se transformou ao constituir um museu no espaço que residiu. A realidade de uma personagem e a ficção de uma vida. A casa-museu de Eva Klabin é tanto uma natureza-morta quanto uma still life. É algo que pertence a um tempo morto e também a um tempo que “ainda” está vivo e “parado”; por isso a razão da natureza-morta ou da still life feita de válvulas antigas de rádio, lembrando que a transmissão radiofônica é o som que atravessa o espaço e cria presenças; por isso a voz de Eva Klabin, como evasão desse espaço que a aprisionou na memória cultural e social que ela desencadeou. Sua voz nos traz de volta a still life que a natura-morta-museu nos privou, criando uma paisagem sonora que nos fala da passagem e da permanência de um tempo ainda vivo.
Substituições e Evasão nos falam de presenças que estão ausentes e de ausências que se fazem presentes, de realidades imaginadas e de imaginações reais, de palavras que fazem ver e de sons que constroem visões. Uma casa ocupada por murmúrios: literatura de imagens sonoras.
Marcio Doctors
Curador