Respiração Krajcberg
Projeto Respiração
23ª edição
15 de setembro de 2018 a 17 de fevereiro de 2019
TRÊS PERGUNTAS SOBRE KRAJCBERG
Para Rebeca e Betina, minhas filhas
Por que respiração Krajcberg?
Quando eu tinha 15 anos, soube de Noel Nutels e fiquei fascinado por sua personalidade. Dei um jeito de descobrir seu telefone e, adolescente intrépido que era, liguei para ele e disse que gostaria de conhecê-lo. E ele, sábio generoso e provavelmente curioso, convidou-me para visitá-lo. A razão de procurá-lo era a guerra do Vietnã. Lembro-me de que estava mobilizado pela guerra e não lembro e nem sei por que achei que ele teria algo a me dizer. A vida é feita de encontros: muitas vezes intuitivos, outras vezes impulsivos e, eventualmente, intempestivos, que podem nos marcar para sempre. E foi o que aconteceu.
Entrei na sua casa timidamente, na rua Pires de Almeida em Laranjeiras. Lembro que tinha outras pessoas na sala. Sentei-me num sofá, entre assustado e constrangido. E ele, extremamente simples, direto, acolhedor e afetuoso, deixou os outros de lado e me deu atenção, fazendo com que me sentisse à vontade e buscando me ajudar no meu sem- jeito de adolescente sem graça.
Noel, à sua maneira bonachona, me disse:
– Então, você quer saber sobre a guerra do Vietnã? O que posso te dizer é que existem duas maneiras de acabar com um povo. Uma é a “solução final” nazista, como na Segunda Guerra Mundial, quando se quis exterminar as pessoas fisicamente nos campos de concentração, e a outra, como a realizada no Brasil, pelo colonizador português, acabando com a cultura dos povos indígenas, buscando catequizá-los e deixando-os entregues à aculturação. O que sustenta um povo, qualquer que seja ele, é a sua cultura. Ou você o elimina fisicamente ou você acaba com a sua cultura. O assassinato pode ser tanto físico, quanto cultural. Sem corpo não há cultura e sem cultura não há corpo.
Nunca me esqueci desse ensinamento precioso e preciso sobre o espírito humano. Hoje, muitos anos depois, é esse pensamento que me norteia na criação e reflexão sobre o RESPIRAÇÃO KRAJCBERG.
Krajcberg é um artista que passou pela Segunda Grande Guerra, teve sua família dispersa e assassinada nos campos de concentração e a casa de sua família confiscada pelos poloneses, lutou contra os nazistas no exército russo e na resistência polonesa. Depois de um périplo por Leningrado, Stuttgart – onde estudou belas-artes e engenharia – e Paris – onde conheceu Chagall –, chegou finalmente ao Brasil, sem saber a língua e sem saber nada sobre o país. Aqui, depois de passar por Rio e São Paulo, ter trabalhado no Museu de Arte Moderna de São Paulo, descobriu a força da natureza em Monte Alegre no Paraná, quando trabalhou para a empresa Klabin, e construiu sua primeira cabana no mato. Aí encontrou a alegria: “Nunca a natureza me perguntou de onde eu vinha, se era naturalizado, qual a minha religião. Isso me deu grande alegria”.1
No entanto, esse encontro com o “paraíso” foi corrompido por outra forma de destruição. O estado do Paraná foi consumido por chamas. As florestas eram queimadas para serem transformadas em plantações de café. Ele não aguentava mais a fumaça. Retomou seu nomadismo: Rio, Paris, Ibiza, até chegar à mina de Cata Branca, em Itabirito (MG), de onde retirou os pigmentos com os quais passou a trabalhar, e finalmente à Nova Viçosa, sul da Bahia, por indicação de Zanine, onde foi imantado pelos manguezais e passou a perceber como era frágil a relação com a natureza no Brasil e o quanto ela estava e está sendo constantemente ameaçada. Nova Viçosa representou para ele o lugar do acolhimento; sua morada.
Krajcberg, ao longo de sua vida, entrou em contato com duas formas radicais de destruição: a provocada pela guerra e a que provocamos na natureza. O RESPIRAÇÃO KRAJCBERG trata de tornar visível esse percurso da destruição e de como a sua arte, em contato com a natureza, foi a potência que o ajudou a enfrentar a questão de sua própria vida.
A trajetória de Krajcberg trata da tonificação da consciência da destruição. É um resistente – assim como todo grande artista –, e sua resistência não é outra coisa senão a perseverança de que não lhe era possível abrir mão daquilo em que ele acreditava: é preciso resistir às forças de destruição física e cultural a que temos sido submetidos ao longo dos séculos e especialmente nos séculos XX e XXI. Sua obstinação: a consistência da consciência. Seu legado: a certeza de que devemos permanentemente enfrentar e nos revoltar contra as formas de destruição da natureza.
Essa é a primeira edição cujo título incorpora o próprio nome do programa de arte contemporânea da Casa Museu Eva Klabin: Projeto Respiração. Pensei que nada seria mais apropriado para um artista, que nem sempre se dizia artista, mas que foi um defensor incansável do meio ambiente e um combatente aguerrido contra a destruição da natureza, pontuar que o importante é respirar. Preservar a natureza não é outra coisa senão preservar o direito à respiração; o direito à vida. Preservar aquilo que nos permite respirar. Por isso: RESPIRAÇÃO KRAJCBERG.
“Detesto a palavra ‘feliz’. Gostaria de saber como me sentir feliz. Estou mais consciente das coisas que faço, mais consciente da minha revolta. Pelas cartas que recebo, sinto que a consciência da destruição vem aumentando. Não posso dizer mais que isso. Seria absurdo de minha parte dizer que estou mais feliz.”2
“Sinto que estou mais perto da força que me dá tranquilidade para viver: a natureza”.3
Qual seria o território e a nacionalidade de Krajcberg?
“Nunca a natureza me perguntou de onde eu vinha, se era naturalizado, qual a minha religião. Isso me deu grande alegria”.4
Pensar os conceitos de território e nacionalidade na questão krajcberiana é elucidativo. De um modo geral pensamos cultura com base no pensamento da história, como um acúmulo de experiências e ações do passado que, somadas, vão delineando um perfil, uma característica de um povo ou de uma nação, com a qual nos identificamos e nos reconhecemos. Nutels estava certo no sentido de que a cultura é fundamental para a sobrevivência de um povo; é aquilo que dá sentido à existência do grupo, mas também a cada um dos indivíduos que pertence a esse grupo. Mas devemos prestar atenção também quando ele fala da eliminação física. O corpo físico é fundamental. Sem ele nada existe porque é ele que garante a nossa vida. Portanto, são as pessoas vivas que garantem a possibilidade dos novos acontecimentos culturais, ao estabelecerem outros valores, outros saberes culturais baseados em um constante rearranjo das linhas de forças do momento do acontecimento vivo do instante. Por isso, os indivíduos que sobrevivem ao passado são a condição necessária do devir.
Os corpos não são descolados da fisicalidade do mundo. É necessário um território que receba os corpos físicos. Assim, se o devir da cultura necessita dos corpos vivos e os corpos vivos necessitam de um território para existir, sem território não há devir.
Mesmo nos processos de desterritorialização e territorialização, como se dá com o povo judeu ou com os ciganos, que carregam consigo sua cultura como uma bagagem, levando-a para onde forem, é necessário um território. Em outras palavras, ao levarem consigo uma cultura do espírito milenarmente solidificada, esses povos necessitam de um território para que a cada nova territorialização possam reinventar o corpo cultural, atualizando-o a partir do devir, que está indissociavelmente associado às variantes dos locais e dos momentos de cada acontecimento nos seus deslocamentos.
No entanto, com os povos indígenas foi parecido e diferente, apesar de também serem errantes. Falta algo na equação de Nutels. O pensamento da cultura como território. Com isso quero dizer que o colonizador português privou os diferentes povos indígenas de sua cultura quando quis catequizá-los, mas também, quando provoca seus deslocamentos de seus territórios, assim como nós brasileiros fizemos no século XX com a criação do Parque Nacional do Xingu. Foi agindo nessa dupla via que a cultura indígena foi minada. A morte cultural ocasionada por essa ação de deslocamento se deveu ao fato de que os diferentes povos indígenas, mais do que todos os outros, construíram sua cultura ancorada no nomadismo, isto é, uma cultura que se desloca num território sem fronteiras físicas, mas cujas fronteiras culturais são estabelecidas, baseadas no reconhecimento do território da natureza, a partir do qual constroem conhecimentos fundamentais para a sua sobrevivência. Portanto, expulsá-los de seus territórios ou segregá-los em territórios desconhecidos e ainda não transitados e reconhecidos por impulso próprio ou necessidade natural significou extrair-lhes a cultura. Significou sua morte cultural. Tornou-os estrangeiros no seu próprio conhecimento; na sua própria cultura.
Desse modo, quando Krajcberg enuncia que a natureza nunca o havia perguntado de onde ele vinha, qual era a sua religião ou sua naturalidade e que isso lhe trouxe grande alegria, encontramos aí a chave para desvendá-lo e também para percebermos como se dá a construção da cultura brasileira. Ele era um estrangeiro e sentia-se um estrangeiro por tudo que tinha vivido e por constantemente ser lembrado de que era estrangeiro. Ele reclamava que não o consideravam um artista brasileiro. Ele era mais reconhecido como brasileiro fora do Brasil do que aqui. Há nele um desconforto. Daí sua revolta e sua maneira, muitas vezes, ríspida e magoada de ser, que traduzia uma opção real por afirmar seus valores para que não fosse corrompido e ter uma arma (a revolta ríspida) que enfrentasse a inércia e preguiça alheias que, com frequência, juntam-se para mediocrizar os valores de um indivíduo. Mas também porque era genuíno o seu desconforto em relação às convenções nacionais, religiosas e culturais. Essa sua revolta era necessária. Ele precisava sentir-se estrangeiro para sentir-se mais próximo de si e mais brasileiro do que aqueles que não se questionavam sobre isso e que não o reconheciam como tal.
De certo modo, e guardando as devidas distâncias, ele me lembra os artistas viajantes que vieram para o Brasil, onde ajudaram a erigir uma identidade brasileira com base em um olhar estrangeiro. Como o Brasil é uma invenção, assim como todas as nações são invenções, nas Américas essa questão ficou ainda mais evidente e explícita porque algo precisaria ser construído com uma ideia de dominação territorial e um confronto sistemático com outras culturas já territorializadas, sem nenhuma preocupação nacional e, por isso, sentidas e percebidas como inferiores. Não era um confronto de iguais, mas uma aproximação por anulação. Mas o fato é que aquilo que se convencionou chamar hoje de cultura brasileira foi construído e constituído com um olhar estrangeiro, dos povos de origem africana, europeia e asiática, que determinou o que seria a cultura brasileira, já que a cultura dos povos indígenas eram culturas anacionais.
A singularidade no caso de Krajcberg, que evidentemente não estava preocupado com a ideia de dominação e cujos valores, ao contrário, o aproximava do conceito territorial dos diferentes povos indígenas, era que sua busca também não era nacional, mas territorial, e dessa maneira contribuiu para fortalecer a questão de uma cultura brasileira. Dito de outra maneira, sua errância fez dele um nômade nacional que, ao sentir-se deslocado ou incomodado em uma territorialidade nacional brasileira – e acredito que em qualquer outro território nacional também –, permitiu o reconhecimento do único lugar que se sentia acolhido: a natureza (na paisagem natural) e, ao mesmo tempo, ao lutar por sua preservação, esboçou verdadeira possibilidade de sentido para a cultura nacional brasileira, indicando sua potência como o local de expressão das linhas de força da natureza em confronto com a capacidade destrutiva dos homens. Ele repactua a relação entre homem e natureza, repactuando-se com ela e esvaziando o antropocentrismo; estabelecendo um novo devir: o devir natureza.
Procurar perceber a obra de Krajcberg por esse viés lhe dá outra dimensão. Liberta-o dos parâmetros da história tradicional e o insere na linha de pensamento de Braudel, Deleuze e Guattari, que a história é uma geo-história e a filosofia uma geofilosofia. E eu diria que existe uma geoarte, que rompe com as amarras da história da arte tradicional, estabelecendo novos parâmetros.
A geografia não se contenta em fornecer uma matéria e lugares variáveis para a forma histórica. Ela não é somente física e humana, mas mental, como a paisagem. Ela arranca a história do culto da necessidade, para fazer valer a irredutibilidade da contingência.
Ela a arranca do culto das origens, para afirmar a potência de um “meio”. […] Enfim, ela arranca a história de si mesma, para descobrir os devires, que não são a história, mesmo quando nela recaem: a história da filosofia na Grécia, não deve esconder que os gregos sempre tiveram primeiro que se tornar filósofos, do mesmo modo que os filósofos tiveram que se tornar gregos. O “devir” não é história; hoje ainda a história designa somente o conjunto das condições, por mais recentes que sejam, que nos desviamos para um devir, isto é, para criarmos algo de novo.5
Foi a paisagem natural que imantou Krajcberg ao território físico “brasileiro”, foi o que propiciou que ele saísse dos cânones da história da arte e a ela retornasse, reinventando- se e realimentando a historiografia da arte brasileira. Mesmo que ele se ressentisse por não ser verdadeiramente considerado um artista brasileiro, ele hoje é parte dessa história e uma expressão importante.
Para que um artista possa ser verdadeiramente um criador, ele precisa romper com a história da arte. Romper com a necessidade, que naturaliza os processos depois do acontecido, para emergir da “geoarte”, que faz valer “a irredutibilidade da contingência”, liberando o indeterminado, o imprevisível, o imponderável e o intempestivo, que é onde se dá potência expressiva da arte e que só o ambiente – mais do que a origem (tão cara à história) – permite, porque não mistifica e libera o devir, como conceito descolado da ideia de futuro passado.
De certo modo Krajcberg se beneficiou de ser “estrangeiro” ou sentir-se estrangeiro, apesar de ter optado pela nacionalidade brasileira. Ele pôde fundar seu território artístico devido à “irredutibilidade das contingências” com que se deparou no território do Brasil, sem sentir-se tolhido pela história da arte local. Em outras palavras, é como se saísse da história da arte brasileira e para ela retornasse. A história da arte brasileira não é feita por nenhuma origem fundacional, mas por uma pluralidade de linhas de força que resistem à história e se submetem à necessidade imposta pela radicalidade do real do seu ambiente/território (“a irredutibilidade das contingências”). Apesar ou graças ao fato de ser estrangeiro ou sentir-se ou ser visto como tal, sua obra contribui para constituir o que se convencionou chamar “arte brasileira”.
Tenho certeza que sem o fato de ter experimentado a alegria, quando tomou consciência de que a natureza não queria saber de sua origem, ele se encontrou com a experiência de sentir-se livre e parceiro do devir de uma arte, que jamais poderia ter imaginado em sua Kozienice natal, na Polônia. Sua força expressiva só pôde apresentar-se ao mundo quando ele viveu esse encontro que o potencializou. Portanto, sem essa geoarte, sem essa contingência vivida, a necessidade não teria sido estabelecida e a história da arte de Krajcberg teria sido outra.
Schelling formula um pensamento muito importante sobre a Natureza que nos ajuda a perceber melhor a obra de Krajcberg: “os gregos viviam e pensavam na Natureza, mas deixavam o Espírito nos ‘mistérios’, enquanto que nós, nós vivemos, sentimos e pensamos no Espírito, na reflexão, mas deixamos a Natureza num profundo mistério alquímico, que não cessamos de profanar”.6
Krajcberg é greco-brasileiro no sentido de que nos indicou que devemos cessar de profanar a natureza e deixar o Espirito nos “mistérios”. Ele precisou ser estrangeiro no Brasil para contribuir formatando a cultura brasileira a se constituir enquanto tal. É uma antropofagia às avessas. Portanto, esse é um dos sentidos possíveis da brasilidade e da história da arte brasileira, que ele ajudou a construir. Muitas vezes é um “estrangeiro” ou o sentimento de ser estrangeiro, que indica a realidade do devir porque não tem compromisso com o passado presente, mas que, liberto das amarras da história, é capaz de perceber o devir, que é a energia expressiva comprometida com a radicalidade do momento e que despista o pensamento de uma origem necessária.
O pensamento da história de arte inventa a origem e a arte se faz com devir, desviando o pensamento da origem.
Por que o Manifesto do Rio Negro do naturalismo integral?
O Manifesto do Rio Negro é basicamente um manifesto contra a tradição do realismo nas artes plásticas e a exaltação da Amazônia como potência da “natureza original”, capaz de empreender “uma higiene de percepção e um oxigênio mental: um naturalismo integral, gigantesco, catalisador e acelerador das nossas faculdades de sentir, pensar e agir”.7
É contra o realismo porque rechaça a metáfora. Para mim essa é uma de suas chaves. Pierre Restany afirma no manifesto que “O realismo é a metáfora do poder. Poder religioso, poder do dinheiro na época do Renascimento, poder político em seguida, realismo burguês, realismo socialista, poder da sociedade de consumo com a pop-art”.
É muito contundente essa afirmação porque desmonta integralmente a ideia da história da arte representativa. Não lhe interessa nenhuma expressão artística que seja metáfora de poder e o realismo seria a instrumentalização dessa possibilidade. Portanto não se trata de naturalismo no sentido de representação realista ou tradição naturalista clássica.
O naturalismo integral seria um salto em relação ao novo realismo, que foi o movimento teorizado por ele e Yves Klein no início dos anos 60, que, ao contrário da pop-art, não está interessado nem em exaltar a sociedade de consumo nem em representá-la, mas apresentá-la de maneira direta, transferindo o acúmulo dos próprios objetos por ela produzidos e descartados para o registro da arte. Lembremos os trabalhos de Arman, Dufrêne, Spoerri, Tinguely, Raymond Hains, entre outros, ou da obra de Yves Klein que fez o mesmo com a cor, ao apropriar-se dela como matéria cor (por isso obras monocromáticas), absolutamente descolada de qualquer representação ou rechaçando utilizá-la como matéria artifício para enganar a percepção do olhar, tal como foi realizado, por quatro séculos, a partir da invenção da Renascimento.
O novo realismo preconiza a radicalidade do real, limpando a intermediação da representação. Da mesma forma, Krajcberg, que chegou a fazer parte de uma exposição do grupo dos Novos Realistas, em sua série de trabalhos produzidos em Ibiza, por exemplo, decalca diretamente no papel a natureza na sua expressão material. Transfere para o papel superfícies rochosas, plantas, areia da praia, enfim, é uma espécie de “realismo” sem a intermediação da representação porque não metafórico. São obras que visam capturar direta e radicalmente a matéria real e não a realidade da aparência da matéria.
Nessas ações não há metáfora. A importância dessa atitude é que ela esvazia a ideia de uma metafisica transcendente da Natureza. O artista passa a se relacionar diretamente com a imanência da Natureza, sem perder sua espessura metafísica, que é garantida pela arte, como produção de objetos sensíveis e, por isso, metafísicos, por conectarem-se, sem intermediações ou metáforas, com os mistérios do mundo. Trazendo de novo o pensamento de Schelling, podemos reafirmar que Krajcberg, assim como os gregos, vivia e pensava na Natureza, mas deixava o Espírito nos mistérios.8 O que lhe interessava era o envolvimento estreito com a potência da Natureza e trazê-la diretamente para o registro da arte e apresentá-la dessa maneira para o público.
A consequência dessa atitude plástica é que o esquema da mimese é desmontado. Não há imitação, não há representação, não há cópia. O que existe “é o espírito do puro constatado” e a “informação sensível sobre a natureza”. O que permanece é a afirmação da radicalidade real da matéria, que não é inquirida espiritualmente, mas presentada na sua cintilação máxima como força da própria natureza. Em outras palavras, o artista recusa-se a competir com a Natureza. Está tudo lá. O que ele propõe é surpreender essa beleza contida na Natureza e mostrá-la, alertando que toda essa beleza, com a qual nos identificamos, está sendo destruída, correndo sério risco de ser perdida. Por isso que, em muitas entrevistas, ele se diz mais um defensor da natureza com o seu trabalho do que propriamente um artista.
O naturalismo integral, portanto, por não ser metafórico e não reproduzir ou agenciar nenhuma vontade de poder, objetiva agenciar, segundo as palavras de Restanny: “outro estado de sensibilidade, uma maior abertura de consciência”. E foi exatamente isso que Krajcberg realizou por meio de sua arte e da luta que travou a favor da natureza até o fim de sua vida.
Ou ainda, como nas palavras de Krajcberg:
– A natureza amazonense coloca minha sensibilidade de homem moderno em questão. Ela coloca também em questão a escala de valores estéticos tradicionalmente reconhecidos. O caos artístico atual é a conclusão lógica da evolução urbana. Aqui (na Amazônia), somos confrontados a um mundo de formas e de vibrações, ao mistério de uma transformação contínua. Devemos saber como tirar o melhor partido.9
A experiência radical desse momento foi vivida por Restanny, Krajcberg e Baendereck, na travessia do Rio Negro e foi o momento que, envoltos pela magnitude da Floresta Amazônica, Restanny pode tecer suas ideias sobre o naturalismo integral, que é a busca por despertar uma consciência planetária, que pretende lutar “muito mais contra a poluição subjetiva do que contra a poluição objetiva – a poluição dos sentidos e do cérebro contra aquela do ar e da água”.10
A “irredutibilidade da contingência” a que se refere Deleuze e Guattari, assim como o que chamo de radicalidade do real” são fronteiras limites com as quais cultura e arte lidam. A geografia amazônica não forneceu somente uma localização para esse acontecimento. Não foi apenas um marco de datação histórica na trajetória de Restany e Krajcberg, ela forneceu um meio (uma paisagem mental). Ela os arrancou “do culto das origens, para afirmar a potência de um ‘meio’”, que se sobrepõe à necessidade histórica, afirmando a relevância de um local-momento para a deflagração de um novo sentido; de uma nova história. A “irredutibilidade da contingência” e a “radicalidade do real” dessa experiência os conectaram ao devir.
A travessia do Rio Negro e a presença avassaladora da Floresta Amazônica impuseram- se de tal forma que transformaram e ampliaram suas consciências: Restany redigiu o Manifesto do Rio Negro, e Krajcberg fortaleceu ainda mais sua convicção e militância pela causa ambiental.
O naturalismo integral é a constatação de que o homem não é mais o centro do planeta nem o centro dos animais, e recoloca a Natureza no centro das nossas preocupações. Atribui a nós, nossa verdadeira dimensão de uma, entre as múltiplas variedades de seres vivos, relativizando nossa posição. Desencadeia, no lugar de uma consciência individual, a expressão de uma consciência e de uma sensibilidade planetárias, afirmando que “no fim das contas, a natureza é, e ela nos ultrapassa dentro da percepção da própria duração. Todavia, no espaço tempo da vida de um homem, a natureza são as medidas de sua consciência e de sua sensibilidade.”11
Acredito que isso tenha sido o que Krajcberg ativou ao longo de sua vida e que suas obras são a tentativa de tradução desse sentimento de que diante do tempo cósmico, somos nada, e no curto espaço de tempo que nos é reservado, a natureza nos fornece a consciência e a medida de nossa sensibilidade. Acredito que foi isso que Krajcberg buscou empreender ao longo de sua vida, lutando contra a destruição imposta pela guerra e a destruição que, nós, impomos a nós mesmos e ao planeta, ao constantemente desnaturalizarmos as relações pessoais e ambientais através da lógica perversa do trabalho, da urbanização desenfreada e da lógica do poder (Nutels e Réstany) em detrimento das outras potências possíveis de nos conectar com o sentido da vida, como a arte.
Para mim Krajcberg é um inventor de objetos sensíveis que nos emocionam porque, sem querer imitar a Natureza, sua obra nos coloca frente a frente com a potência de sua beleza porque não a interpreta ou a representa; ele simples e humildemente aceita que, sendo impossível competir com a beleza natural – o que inclusive não faria mais sentido depois que a arte moderna separou a beleza estética da beleza natural –, ele poderia dedicar-se, como um arqueólogo do futuro, a inventar obras que retenham recuperando, através dos escombros da destruição, a memória de um planeta que um dia destruiu o meio ambiente e que restaram essas relíquias preciosas de beleza natural, que são as suas obras.
1 A consciência da revolta da destruição. Entrevista prestada a Mario Sergio Conti. Folha de S. Paulo, caderno + mais !. 10 de fevereiro de 2002. Disponível em https://www1folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1002200211.htm
2 Ibid.
3 Ibid.
4 Ibid.
5 DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O que é a filosofia. 2ª ed. Trad. Bento Prado Junior e Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: 34, 1997, p. 125-126. Para melhor elucidar essa questão, cito comentário de Deleuze e Guattari sobre Nietzsche, que foi quem conceituou a importância de se pensar o elemento “não-histórico”: Sem a história, o devir permaneceria indeterminado, incondicionado, mas o devir não é histórico. Os tipos psicossociais são da história, mas os personagens conceituais são do devir. […] O elemento não-histórico, diz Nietzsche, “assemelha-se a uma atmosfera ambiente sem a qual a vida não pode engendrar-se, vida que desaparece de novo quando essa atmosfera se aniquila”. É como um momento de graça, e “onde há atos que o homem foi capaz sem se ter antes envolvido por essa nuvem não- histórica?” [NIETZSCHE, F. Considérations intempestives, “De l’utilité e des inconvenientes des études historiques”,§. 1. Sobre o filósofo-cometa e o “meio” que ele encontra na Grécia, La naissance de la philosophie, Gallimard, p. 37]. Se a filosofia aparece na Grécia, é em função de contingência mais do que de uma necessidade, de um ambiente ou de um meio mais do que de uma origem, de um devir mais do que de uma história, de uma geografia mais do que de uma historiografia, de uma graça mais do que uma natureza.
6 Ibid., p. 132-133.
7 Manifesto do Rio Negro do Naturalismo Integral de Pierre Restany. Alto do Rio Negro, quinta-feira, 3 de agosto de 1978. Na presença de Sepp Baendereck e Frans Krajcberg. In: FERNANDINO, Fabrício. (R)evolução Frans Krajcberg, o poeta dos vestígios. Rev. UFMG. Belo Horizonte, 21(1e 2):260-277, jan/dez 2014. Disponível em: https://seer.ufmg.br/index.php/revistadaufmg/article/view/1737
8 Em DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O que é a filosofia. Op. cit. p. 132-133.
9 Em FERNANDINO, Fabrício. (R)evolução Frans Krajcberg, o poeta dos vestígios. Op. cit., p. 267.
10 Ibid., p. 276.
11 Ibid., p. 275.
Texto: Marcio Doctors
Fotos: Mario Grisolli