Nuno
Ramos
PERGUNTE AO
8ª Edição
04 de abril a 08 de junho de 2008
NUDEZ E MUDEZ
O encontro da obra de Nuno Ramos com a coleção e com a casa de Eva Klabin produziu uma tensão visual positiva e ousada na trajetória do Projeto Respiração. Há no artista uma paixão avassaladora pela arte, e esse sentimento se manifesta de forma paradoxal. Explico: seu desejo de preservar o território da arte é tanto que seu impulso foi o de conservar a coleção longe do olhar “intruso” do público. Seu desejo foi devolvê-la a si mesma; aprisioná-la ainda mais no “círculo mágico” (1) que a colecionadora criou para abrigá-la.
Como um colecionador, que ao comprar uma obra de arte a retira de circulação do mercado, captando a visão da obra para si, Nuno propõe retirar as obras do alcance da visão do visitante para preservar algo de precioso que elas encerram – a força do sentido do espírito que organiza a matéria -, e devolvê-lo para elas mesmas. Seu desejo é o de fazer prevalecer a obra de arte e a arte acima do artista, do crítico, da instituição, do mercado, do curador e do público. Para ele o importante é o triunfo da arte.
A maneira como Nuno Ramos realiza essa operação é radical e destemida. Parte de uma consciência da irredutibilidade dos materiais com que lida e destaca a sua ação como a de um aglutinador desses materiais, graças às suas diferenças e não apesar delas. Nesse processo o que permanece ou o que é entregue à visibilidade é a potência da ação de juntar o que aparentemente não estava destinado a estar junto.
Esse processo fica mais evidente e é mais facilmente percebido em suas pinturas monumentais, nas quais o que garante a possibilidade de juntar materiais que não se misturam – espelho, vidro, tecido, madeira, óleo, metal, plástico, tinta, vaselina e outros – é uma ação externa e estranha a eles. É a própria ação do artista que deixa de ser um elemento que desaparece ao longo do processo criativo para ser uma força a se manifestar e a se presentificar no resultado da obra. Em outras palavras, não é a plasticidade inerente aos materiais que desencadeia uma poética (Nuno não é um esteticista; não faz aflorar a poética dos materiais), mas é a ação/imaginação do artista, ao reunir o não-reunível, que explicita uma apreensão estética do mundo denotadora da própria tensão do mundo em que vivemos e o paradoxo que subjaz a tudo. Em Nuno, essa atitude não é um capricho gratuito, mas o próprio sentido que costura a sua obra. Alberto Tassinari surpreende esse processo ao dizer que: “As obras de Nuno Ramos surgem pelo modo ostensivo de unir instâncias, elementos e materiais muito pouco unificáveis. As diferenças saltam à vista, mas também as nervuras a reuni-las. De uma união de impossíveis, fica à mostra o fazer que as aglutina”.(2)
Esse “fazer que as aglutina”, enunciado pela fina sensibilidade de Tassinari, é uma sintaxe criativa singular que procura explicitar a estrutura do paradoxo. Na intervenção Pergunte ao, por exemplo, o que se dá a ver é o que esconde a obra, e o que esconde a obra faz com que ela se veja no lugar de ser vista, e a resposta /contacto que esperamos de uma obra visual é transformada numa frase que induz a inquirir indicativamente as coisas do mundo: Pergunte ao, da mesma forma que perguntamos à obra do que ela trata, ao buscar desvendar o seu mistério. A parte “refletiva” do espelho revela a imagem para ela mesma, a parte opaca do espelho nos devolve o mistério da visibilidade na forma imperativa de perguntar. Há nessa inversão, provocada por Nuno, a tentativa de explicitação do processo de consciência das coisas: pergunte a si mesmo no silêncio/cegueira das imagens e receba o sentido como resposta/pergunta.
O processo ostensivo de evidenciar o trânsito secreto que costura o sentido das coisas gera um estremecimento ou um desalinhamento naquilo a que estamos habituados pela tradição. Há uma quebra na linearidade discursiva como se o que está aprisionado no registro da visualidade pudesse falar, ou se aquilo que é refém do que pode ser enunciado pelas palavras pudesse ser visível. Nessa intervenção é como se sua obra se aproximasse de um magma anterior à separação das palavras e das imagens. É como se desejasse reinstaurar o momento anterior, quando tudo era um e deu origem à irredutível separação que a forma impõe ao pensamento e à matéria.
No processo dessa aproximação é evidenciado aquilo que estou querendo explicitar ao enunciar que a força inventiva de Nuno Ramos está em trazer à superfície da manifestação da visibilidade o processo da união do que não se mistura como um fim em si. Interromper o vínculo “natural” entre a obra e o espectador é uma quebra de expectativa que tem por fim tonificar a relação com a arte. Da mesma forma que em certas tradições religiosas e populares, durante o período de luto, espelhos são cobertos com o propósito de afugentar o morto (para que ele não surja entre os vivos, refletido no espelho), Nuno encobre os quadros, as esculturas e os objetos para restituí-los ao seu lugar de origem, que é a arte; e a palavra é introduzida como um deslocamento da imagem capaz de restituir não a visão da arte, mas o seu sentido, da mesma forma que ao impedir que o morto seja refletido no espelho, lembramo-nos do lugar da vida na morte e da delicada relação entre a vida e a morte.
Na série Permito, granitos negros fazem alusão direta a lápides, criando analogia entre a idéia de casa-museu de colecionador e o tempo, que, encravado, no passado se perpetua no presente. Uma vida que permanece para além da morte; ou uma vida para a qual a morte não é uma interrupção, mas a possibilidade de continuidade entre os vivos, “porque a vida e a morte são uma só coisa” (3). Essa percepção de casa-museu como uma unidade entre o passado, o presente e o futuro, ou como um vaso comunicante entre a vida e a morte, estabelece uma idéia de que a arte é capaz de gerar entrelaçamentos entre as diferentes camadas de tempo. E, de fato, é isso o que ocorre na casa-museu de Eva Klabin e com o Projeto Respiração.
Porém, quando Nuno Ramos faz com que esculturas, móveis e objetos se vejam refletidos na face polida do granito (criando um espelho negro), gravando na face não-polida do granito a série de frases do Permito, ele está aludindo à relação entre o que é permitido e o que é interditado. O granito negro interdita a visão do objeto e permite a sua visão ao refleti-lo na face polida. O que interdita permite; e o que permite interdita. Esse jogo entre o que se dá a ver e o que se esconde, entre o que se materializa ao olhar e o que nunca se materializará à visão, é o processo inerente à construção da obra visual e plástica. No processo de evidenciar a tensão oposta entre interdição e permissão, Nuno mais uma vez revela o antagonismo como uma instância instauradora da arte.
Seguindo por essa linha de raciocínio, gostaria de destacar o que mais me chama a atenção nesta 8ª edição do Projeto Respiração: a palavra – o verbo. A palavra permeia todas as obras idealizadas para este espaço e constitui o fulcro desta exposição, ou seja, a irredutibilidade entre as palavras e as imagens que o artista procura juntar da mesma forma que procura unir materiais que aparentemente não são para ser unidos, como já demonstramos.
A presença da palavra é uma constante na trajetória de Nuno Ramos, mas, para além do fato de ser excelente escritor, a palavra tem uma função instauradora na constituição de sua obra visual e é esse o aspecto que me interessa. Nuno é uma mistura de Beckett e Goeldi. Há, como neles, uma solidão, um abandono e uma perplexidade que se juntam a uma percepção aguda de seu próprio tempo, difícil de ser enunciada, mas fácil de ser percebida ou sentida quando diante de suas obras. É uma presença da verdade do processo criativo que se cola à obra durante sua feitura e que é percebido como sensação indizível quando a obra é vivenciada. A palavra funciona como um clarão (o branco que insidiosamente atravessa a superfície negra de Goeldi) ou como uma sonoridade cujo texto tem a mesma presença e a mesma força pontual, indicativa e silenciosa de uma imagem (Beckett).
A obra de Nuno Ramos atravessa o cenário das artes como um clarão que ilumina o indizível e se enuncia como verdade pela presença da sensação desencadeada pela junção dos materiais. Não é uma poética oca de administração da sedução dos materiais, mas presença avassaladora da matéria agindo no pensamento como se fossem palavras. A tensão positiva nasce dessa dicotomia, que se resolve no seu oposto. Dito de outra maneira, a palavra exerce uma função plástica, e a matéria se configura como enunciado verbal. Essa torção estabelece um território sensível que nos aproxima da verdade como presença com a qual nos identificamos e não necessariamente sabemos como definir. É algo da ordem do sensorial.
Enunciar essa percepção é árduo porque é difícil traduzi-la em palavras e também porque fica implícita a sua impossibilidade. Corro o risco medido de ser mal interpretado levianamente. Mas meu pensamento se constrói ao longo dos meus textos como um exercício de escavação em que tenho de retirar camadas mentais que se intrometem entre mim e a obra e me aproximar da sensação. Assim é o meu processo de escritura e de invenção. É o lugar onde me reconheço. Por isso, na medida em que o texto vai sendo tecido, descubro no seu sentido o sentido da obra. Foi assim também com a obra de Nuno. Quanto mais me envolvia com a mecânica do fazer do meu texto, mais a sua obra se revelava e ia descobrindo coisas, que eu mesmo desconhecia como o porquê do nome deste texto (“Nudez e mudez”) que dei antes de começar a escrever. Foi, por exemplo, através da série das Vitrines, que percebi a razão do título.
Na série das Vitrines, as esculturas e os objetos da casa falam. Nuno cria textos especiais para a escultura de autoria anônima de Santa Teresa de Ávila do barroco austríaco, para o relógio Luís XIV, para as poltronas da Sala Inglesa e para a mesa da Sala de Jantar. Não resisto à tentação de associar esse trabalho à atitude de Miguel Ângelo diante do seu Moisés pronto, ordenando que falasse: “Parla!”. Mas o que parece ter motivado Nuno é o oposto dessa idéia. O artista não quer trazer a obra de arte para dentro do circuito da vida, nem há qualquer proposta mimética na sua intencionalidade. Ao contrário, propõe nos levar para dentro do universo da arte e, mais uma vez neste caso, através de uma interdição: os objetos da casa-museu estão aprisionados dentro de uma redoma falante que reproduz a fala desses objetos. A visibilidade nua é encapsulada pela retórica, e a imagem se faz verbo.
Diferentemente do que uma percepção mais imediatista poderia sugerir, o que Nuno Ramos oferece à visão são objetos despidos de qualquer interferência. Ele não modifica nada neles. Por isso, a nudez. Cria barreiras para o olhar para preservá-los na sua integridade original. A modificação é determinada pela palavra escrita ou falada que solicita do espectador um esforço maior de aproximação para penetrar no universo que o artista intencionalmente quer apartar do olhar do público, mas que lhe é devolvido por um envolvimento mais amplo, desencadeado pela força imagética da palavra. As palavras têm a função de nos colocar em contato direto com as obras de arte da coleção, despidas de qualquer interferência: nuas.
Nuno Ramos é um artista-filósofo. No que filosofia e arte podem ter de melhor. Ele as utiliza como instrumentos que vasculham a realidade e nos devolvem uma percepção que nos aproxima de algo que nos identifica com a verdade de nosso tempo. Não me parece que para ele arte tenha função expressiva, mas função extrativa, isto é, função de operar, através do processo criativo (por isso a importância da mecânica do fazer na sua obra), os diferentes substratos subjacentes ao mundo da aparência das imagens, de forma que a nossa percepção vá ao encontro deles como identificação e não como localização. Em outras palavras, ao juntar, na superfície da percepção, palavras e imagens – da mesma forma que junta sal e breu ou a sua obra com as obras da coleção Eva Klabin -, ele está explicitando que quando lidamos com a irredutibilidade, não podemos equacionar a realidade através da causalidade. Palavras não são nem causa nem efeito das imagens e, tampouco, imagens são efeitos ou causa das palavras. O que nos resta são associações que surpreendem a realidade do mundo no pulo. E surpreender esse momento do salto é do que trata a obra de Nuno Ramos. Não há como explicá-la; resta-nos desvendá-la através da identificação muda: Nudez e mudez.
Marcio Doctors
Curador
1) Walter Benjamin. “Desempacotando minha biblioteca”. Em Iluminations. Glasgow: Fontana/Collins, 1977. p. 60-61. Estão no ensaio não só a expressão como também o conceito de que o colecionador, ao colecionar, retira do mercado a obra de arte para constituir o círculo mágico que captura a obra em uma outra realidade.
2) Alberto Tassinari. “O encantamento do mundo”. Em Nuno Ramos. Rio de Janeiro: Centro de Arte Hélio Oiticica, 1999; São Paulo: Museu de Arte Moderna, 2000. p. 11.
3) Título de uma obra de Rui Chafes, que realizou a exposição “Nocturno”, durante a sétima edição do Projeto Respiração.
Fotografia: Vicente de Mello