Carlito
Carvalhosa


REGRA DE DOIS

13ª edição
26 de abril a 26 de junho de 2011

Regra de dois

A Fundação Eva Klabin é um espaço em suspensão. Fora do tempo: um tempo de espera. Um tempo entre a vida de quem a habitou e o tempo do visitante que percorre a casa vazia dos passos de sua proprietária, de suas gavetas cheias, de seus armários arrumados, de sua cozinha em ação. A conversa dos empregados, os cochichos pelos cantos, os segredos não revelados dos sonhos de Eva. Isso se foi. A casa se fechou em si, isolada do burburinho e do tráfego que a circunda, isolando-se em um mundo próprio, como se não pertencesse mais a realidade à sua volta. Tudo permanece como quando pessoas habitavam essa casa, mas o vazio que se instaurou, do tempo que se foi com sua proprietária, é hoje a realidade irreal, que envolve essa cena, fazendo-nos prisioneiros de uma fantasia da ausência. A ausência é o que hoje habita a casa, engessada numa ordem que o colecionismo impôs.

Pergunto-me se o primeiro impulso de Carlito Carvalhosa diante da coleção e da casa, ao comentar que se surpreendia de que deveria haver – mas não encontrava – uma tensão entre a natureza distinta dos objetos e a ordenação imposta a eles pela colecionadora porque tudo parecia se igualar, não seria a percepção da presença da ausência. Os objetos estão lá, mas a vida que os envolvia não está mais lá. A ordem salta aos olhos – como encarnação espacial do vazio -, estabelecendo uma harmonia apaziguadora, que, como um grande apagador, apaga as arestas das diferenças. Há um descompasso fundador no imaginário do visitante entre aquilo que os olhos percebem dos objetos e da casa e a lembrança-imagem que deles e da casa levam consigo. É a ausência de vida que impregna de uma sensação fílmica uma realidade que se faz cinema. A casa é cinema porque ocupa o lugar do vazio deixado por aqueles que a habitaram. É uma espera de um tempo que não se realiza porque se coloca fora do tempo. Carlito percebeu isso com aguda sensibilidade quando se questionou sobre a tensão, que deveria haver entre os objetos, mas que, de fato, não há porque a casa está domada pela ordem que a sufoca mas que lhe dá sentido.

Como “competir”, então, com a ideia do acúmulo de formas, quando a obra de Carlito Carvalhosa trata da dissolvência delas? Esse foi o desafio que se colocou para o artista. Pensou a princípio que poderia radicalizar a repetição do ato de acumular [intrínseco à ideia de colecionar], só que faria uma coleção do mesmo e não do diferente. A casa-museu ficaria tomada por um mesmo objeto banal: um copo, por exemplo, que se repetiria e se acumularia de tal maneira e em tal quantidade que, ao estender o ato fundador da coleção, ao invés de dissolver as diferenças as destacaria. Um objeto intruso que se introduziria na coleção pelo ato de colecionar, desencadeando a própria realidade que domina esse ambiente, só que de maneira quase ficcional, reafirmando a irrealidade da realidade de uma casa-museu de colecionador. Depois imaginou a desmesura da forma, exorbitando de tal maneira as dimensões de alguns objetos da coleção, como uma ferramenta possível de desestabilizar a uniformidade que impregna a casa. Seriam formas tão gigantescas em que se perderia a proporção e talvez até o reconhecimento. Pensou em reproduzir a sensação que teve em um dos pátios dos Museus Capitolinos, em Roma, onde os fragmentos descomunais da escultura do imperador Constantino não permitem abarcar o contorno da forma, quase desfazendo seu reconhecimento. Dessa maneira, imaginou que poderia fazer um comentário irônico da forma através do seu excesso, voltando-a contra si. Nesse caso, ao utilizar-se da mudança de escala, desfaria a forma, introduzindo um ruído no ambiente homogêneo e equilibrado da fundação.

Mas não foram exatamente essas soluções que, de fato, se concretizaram. Penso que o artista encontrou na casa-museu uma espécie de duplo oposto do sentido de sua obra. Como competir com a ideia de coleção, em que o que se impõe é o domínio da forma?  Explico: sua obra trata de questionar a forma a partir da dissolvência do seu limite, para nos colocar no espaço do entre as coisas.  Nas instalações (Apagador – MAM / Bahia, Estou lá – Paço Imperial / Rio de Janeiro, ou a Soma dos dias – Pinacoteca do Estado de São Paulo), em que elimina através de tecidos suspensos a profundidade do espaço ou, em outras palavras, barra a linha ficcional do horizonte, o artista remete o espectador / participante para uma situação espacial em que ele se vê lançado para o seu espaço interior por estar sendo privado da profundidade do espaço. É criada uma situação em que o indivíduo perde a sua referência habitual porque, não havendo mais o limite do horizonte e da profundidade, ele se descobre no “espaço” do seu tempo interior. Da mesma maneira, só que de forma inversa, é o que se passa na casa-museu de Eva Klabin. Aqui, o que é oferecido ao visitante é uma proliferação de objetos, que se multiplicam em formas quase infinitas, mas que estão como que suspensas num tempo paralisado de vida. Se nessa situação há uma ausência do fluxo do tempo que foi paralisado, nas obras de Carlito, ao contrário, o que escoa é o tempo, e o espaço é oferecido como uma dissolvência da forma. Lembremo-nos das séries de espelhos da exposição Fora da casinha (Galeria Silvia Cintra, Rio de Janeiro), em que os espelhos nos oferecem o reflexo de nossas imagens aprisionadas em uma superfície tomada por outra imagem de uma tinta que escorre; qual a verdadeira natureza da forma na imagem? Ou ainda, nas instalações referidas acima, nas quais os corpos dos visitantes surgem como vultos nos labirintos de tecidos, desfazendo o contorno da forma.

A questão de Carlito Carvalhosa está centrada na ideia de tensão que é capaz de gerar ao colocar a forma em questão. Necessitava trazer para dentro do ambiente da casa-museu essa tensão. A ideia inicial dos copos evoluiu, e ele encontrou uma solução fantástica. Eles não seriam mais iguais, mas diferentes entre si, se espalhariam pelo chão e se transformariam também em suportes que elevariam os móveis centrais da Sala Renascença, que recebeu sobre o chão um tapete feito de luzes fluorescentes, criando uma sensação de suspensão e quase levitação. Com luz e copos de vidro, o artista intensificou a sensação de irrealidade real provocada pela ausência de vida que impregnou esta casa, transformando-a numa espécie de depósitos de formas. A ação do artista, como a de um prestidigitador, introduziu a luz  – elemento que mais falta na casa -, trazendo de volta a fluidez das matérias impalpáveis, que é a força capaz de pôr em questão a permanência da forma.

Carlito Carvalhosa levou a luz para outros ambientes de maneira intensa, para a Sala Inglesa e para a passagem entre a Sala de Jantar e a Sala Chinesa, como se quisesse cegar pelo excesso de luz, desfazendo a profundidade do espaço e nos permitindo experiências mais próximas do fluxo do tempo, que acontece no nosso corpo interior. Ele, o artista, não tem nenhum romantismo em relação à forma. Seu interesse está em descobrir as conexões que a superfície da matéria pode desencadear na profundidade do mundo, como sendo sempre um ponto possível na profundidade do universo pensado como camadas de superfícies. Isso o leva a criar outra estranheza “provocadora” da forma: a de introduzir, assim como fez no Palácio da Aclamação, em Salvador, a natureza num ambiente hostil a ela, tomado e domado pelo mundo da cultura.

No último ambiente de visitação do circuito da casa-museu de Eva Klabin, somos surpreendidos por uma floresta. De novo os olhos barrados. A profundidade do espaço interditada pela massa de folhagens, explicitando, como numa floresta, que a conquista da profundidade do espaço se dá atravessando camadas de superfícies de visibilidade. Diante da força da natureza a intensidade da forma não é capaz de ser apaziguada, como na coleção, em que a diferença é domada e dissolvida pelo sentido agregador desencadeado pela ação da colecionadora. Carlito Carvalhosa nos oferece sua regra própria: a “regra de dois”, criando uma passagem entre as potências da arte e da natureza no que elas têm de comum ao lidarem com a forma como um interstício, como algo que acontece no entre, revelando-nos as fendas do mundo.

Marcio Doctors

Fotografia: Mario Grisolli