Laura
Lima
CINEMASHADOW SEGUNDO
16º edição
13 de novembro a 20 de dezembro de 2012
(Fleshimage) ou Carnimagem
Não podemos ter nem cerimônia nem inocência para entrarmos em contato com a obra de Laura Lima. Ela é crua. Crua como a carne dos corpos vivos com que trabalha. Como na série Homem= carne / Mulher = carne, que se desdobra ao longo de sua obra, desde 1995. Gesto de equivalência que busca um espaço real, como nos mostra Lisette Lagnado 1. Ou Vaca na praia, seu primeiro trabalho público, realizado nas praias do Arpoador e Diabo, no Rio de Janeiro. Ou ainda a presença recorrente dos corpos em várias outras situações que se apresentam nus, seminus, vestidos ou maquiados, silenciados como vida carne, reforçando-os na sua crueza (pureza) como matéria suporte da sua obra 2. Há nessa “equação” uma irredutibilidade que a afasta radicalmente de qualquer apreensão de representação tradicional. A carne viva que ali está é matéria reconhecível e familiar do mundo, disponível para articulações absurdas (absurdas?…), ou não seria ela, na sua sem cerimônia ou na sua não inocência, o limite irredutível da impossibilidade da representação e da mimese?
A presença da carne vida como recusa radical da representação. Equação difícil de ser absorvida, mas de consequência radical de articulação de sentido porque nos desafia quando não permite que isso se transforme em axioma de sua obra. Essa é a armadilha que ela quer evitar e na qual não quer que caiamos. Ao contrário. É desse lugar que ela escapa sistematicamente porque quer a carne como um ponto de indiferenciação; como o não lugar capaz de agenciar o fundo abstrato que migra pela epiderme do mundo, evitando que sejamos ludibriados pela forma. “Em Laura não há mimetismo”, como nos mostra Ricardo Basbaum 3. O que ela deseja, parafraseando uma obra de Claudia Bakker e Cristina Pape, é um “Jogo aberto”4, em que um possa jogar no jogo do outro, para que possamos jogar o jogo do mundo (nas potências da natureza e do cosmos). Melhor, que as oscilações da matéria em forma e da ideia da forma como fôrma da matéria ou material moldado sejam “replaçadas” por percursos de abstrações e contundências. Ela não quer nos enganar. Ela é como O mágico nu 5, que arregaça as mangas para mostrar que não esconde nada e que está tudo à mostra. O mistério é aparente. As formas vão se fazendo e desfazendo; metamorfoseando-se. Não há substância nem forma definitiva: há potência criativa e contundência expressiva. A arte como o Deus de Spinoza, aquilo que é em potência, ou existência em devir, como prefere Deleuze.
Laura Lima esvazia a representação como ilusão ou mimetismo para substituí-la por uma rede de conteúdo e expressão, criando coerência de articulações capazes de nos colocar frente a frente com o mistério do mundo, sem cerimônia ou inocência, indicando-nos: eis aí o caos! O caos é o caldo que nos alimenta e irrompe como força desagregadora que a ação/arte agrega como maneira de nos manter aliados à potência geradora do universo, como o ponto de contração que necessitamos para nos aproximar da radicalidade do real, que se apresenta sem dissimulações ou causalidades, como descolamentos contínuos. A crueza do corpo e da representação não ilusionista é a semente que compõe a imagem do mundo para a artista e é, de fato, o material com que trabalha e que lhe permite uma ação de caráter nômade da imagem, implícita nas suas criações. Não se trata de ser no exterior da imagem (como queriam os renascentistas) ou de ser no seu interior (como queriam os modernistas) ou de romper a barreira arte/vida (como queriam os artistas dos anos 1960/ 1970), mas de ser na imagem, como agente cúmplice do seu devir, como se o olhar não nos pertencesse, mas como se nós pertencêssemos ao olhar da imagem 6.
O agenciamento do paradoxo que estabelece através de sua obra nos permite pensar a história da arte fora do registro da mimese; como uma história da não representação. Isso aparentemente pode não ter nada de novo. Afinal desde o impressionismo, a arte deixou de seguir os cânones da representação naturalista clássica. Mas a contribuição da obra de Laura Lima para essa questão é que a representação passa a ser um problema dos historiadores e não dos artistas. Historicamente o artista nunca representou nada de fato. Sua prática sempre foi a de desterritorializar para reterritorializar sentidos. Esse é o movimento interno da arte que permite a cada artista não representar, mas reproduzir o mundo ao reordenar a matéria e seus fluxos, criando estilos singulares, que depois os historiadores agrupam, definindo estilos de épocas. Em outras palavras, a única coisa que o artista faz é “representar”, mas representar não como substituição a algo preexistente, mas como recriação contínua das forças da criação. Mergulha no caos para evidenciar o mistério como processo contínuo de reterritorialização.
A maneira como Laura Lima articula essa questão é de uma sabedoria visual que requalifica o problema da representação, recolocando-o em outra dimensão. Não se trata de abstrair o visível para se aproximar das potências dissociativas da representação do real, que permitiram maior aproximação das forças imateriais e intangíveis como parte da expressão plástica, tal como fizeram os modernos clássicos ao filtrarem a experiência do conceito kantiano do sublime. Justiça seja feita, apesar de ingênua e moral, a estética kantiana reafirma a certeza da arte como sensação. O que Laura faz é reafirmar o repúdio à representação clássica historicista (por verossimilhança), ou afastar-se da representação moderna historicista (por abstração), buscando estabelecer blocos de sensações 7 como campo de irredutibilidade do real na arte. Por isso mesmo é que seu golpe é preciso e contundente porque nos apresenta a crueza do real. Em outras palavras, como não quer a possibilidade da dissimulação implícita na mimese, afirma a crueza da matéria e evidencia que o que a arte sempre fez de fato foi identificar-se com as forças de criação do cosmos sem misturar-se com ele, mas articulando a sua potência criativa, que é o mistério que experimentamos diante do caos. Busca explicitar o campo do indiferenciado, criando um ponto de constrição pela contundência expressiva e pela contração do sentido e vice-versa, eliminado tudo que é desnecessário, tudo que vem carregado de significação.
Esse ponto de contundência e de contração da imagem me remete a uma pergunta que Deleuze e Guattari se fazem em O que é a filosofia? e que encontram a resposta em Virginia Woolf:
Como tornar um momento do mundo durável ou fazê-lo existir por si? Virginia Woolf dá uma resposta que vale para a pintura ou a música tanto quanto para a escrita: “Saturar cada átomo”, “Eliminar tudo que é resto, morte e superficialidade”, tudo que gruda em nossas percepções correntes e vividas, tudo o que alimenta o romancista medíocre, só guardar a saturação que nos dá um percepto, “Incluir no momento o absurdo, os fatos, o sórdido, mas tratados em transparências”, “Colocar aí tudo e contudo saturar” 8.
Quando começamos a conversar sobre a intervenção que ela gostaria de fazer na 16ª edição do Projeto Respiração e ela contou que seria algo como o Cinema Shadow, apresentada nas Olimpíadas deste ano em Londres no projeto Rio Ocupation London, a imagem que me veio de imediato foi a de saturação do momento. Fiquei surpreso quando ela me disse que o título seria Segundo. Surpreso pelo duplo sentido contido nessa palavra, que tanto pode ser o segundo de uma série numérica quanto segundo no sentido de marcação do instante cronológico, que para mim é saturação do momento; é o instante. E essa ideia se fechava com a percepção que eu tinha da sua obra, que trazia embutido aquilo que Virginia Woolf definiu como “colocar aí tudo e contudo saturar”.
Como acredito que a história da arte é construída por paradoxos, preciso, neste momento, desviar a direção da reflexão para dar conta de outros aspectos da obra de Laura Lima que podem parecer para o leitor desavisado uma contradição da minha percepção. Quando afirmo que para a artista o corpo vivo é o limite irredutível do real e por isso não cabe a mimese, e que para poder experimentar essa liberdade é necessário libertar-se de tudo que é acessório (toda significação) para saturar o momento, isto é, estar quase no ponto zero da imagem real, como, então, a obra de Laura Lima ” poderia se perguntar o leitor ” comporta uma expressividade barroca e pode propor uma obra cujo suporte é a imagem fílmica? Minha resposta é que a precisão se revela no paradoxo. Obras como Baile, realizada na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro, suas participações na exposição “Alegoria barroca na arte contemporânea brasileira” (CCBB, Rio de Janeiro) e na da 27ª Bienal de São Paulo, ou O mágico nu, na exposição Grande (Casa França-Brasil, Rio de Janeiro), entre outras, são a percepção do barroco como a intensidade pulsante dos fluxos vivos da realidade. Explosões do instante. São obras que indicam também a irredutibilidade do momento pelo transbordamento e transparência da intensidade. Eis aí também o “cinema”. Todas essas construções de imagens se referem à mesma proposição de que a realidade só não é ilusória quando apresentada na sua irredutibilidade intensiva dos fluxos que a compõem, criando uma passagem direta entre o perceber e o sentir.
A dificuldade de apreender a obra de Laura Lima, assim como a dificuldade de escrever sobre arte, está na irredutibilidade entre as palavras e as coisas, tal como demonstrado por Foucault 9. A artista é consciente dessa dificuldade e busca criar uma espécie de glossário que possa ajudá-la e nos ajudar no pensamento e na percepção de sua obra, ao querer redefinir conceitos cristalizados, que não dão mais conta do que ela deseja fazer. As palavras vão se desfazendo do seu sentido habitual para dar lugar a novas cruezas de sentido que se formam no espaço negativo da palavra e que pretendem dar coerência à sua experimentação. No caso de Cinema Shadow / Segundo, por exemplo, o que ela propõe não é cinema, performance, registro e, muito menos, reality show. Poderíamos buscar definir como um filme sem ser cinema; uma performance sem usar o corpo como roteiro, mas o instante como coreografia do tempo; um registro de uma narrativa sem interpretação ou significado; uma exposição do acontecimento vivo, sem pretender ser um voyeurismo da vida alheia. É uma explosão poética do instante em que, de novo o dado da crueza se revela na centralidade da cena, desnudando as camadas de mistério do mundo e nos apresentando a sua obra em um campo fronteiriço, que poderíamos precariamente definir como uma fronteira de vazios ou como irrupções cintilantes do caos. Talvez melhor seria definir Segundo como o exercício de imagens sonambúlicas que atravessam o mundo sem narrativa ou significado porque nada carrega consigo o em si. São imagens nômades que recusam a edição e se apresentam como plano sequência como a própria constituição da imagem se dá na vida, que, como nos mostra Bérgson, no mesmo tempo que se faz imagem, se faz memória 10. Nesse duplo movimento, ou melhor, nesse instante fenda em que a constituição da imagem se desdobra duplamente em imagem percebida e em imagem lembrança, que se dá Cinema Shadow / Segundo. Por isso ele não é cinema, mas faz uso do filme, não é performance, mas faz uso do corpo no instante, não é registro, mas faz uso da apreensão do momento vivido, não é reality show ou transmissão ao vivo porque não está interessado nem na narrativa nem no conteúdo e nem no significado imediato das coisas, mas faz uso de um espelhamento fílmico como experiência do vivo e do vivido.
Numa noite de insônia e dominado por um caminhar peripatético pela casa fui tomado por ideias sonambúlicas do que seria o Cinema Shadow / Segundo e fui levado a vislumbrá-lo como “carnimagem”. E escrevi o seguinte:
Carnimagem. Por onde o mundo resvala; por onde o mundo se esconde; e o artista, alquimista que é, apresenta a imagem da carne e a carne da imagem, desfazendo o mistério que se apresenta como mistura do que não se quer e o apresentando na sua transparência como aquilo que se percebe e que se sente. A artista ” como os artistas ” é uma sábia: sabe fazer a imagem retornar ao seu nascedouro de ser antes do mundo. Fez-se primeiro a imagem, que ficou vagando pelo cosmos, como a carne devir que se faria mundo. Por isso acreditamos no cinema, por isso acreditamos na pintura, por isso acreditamos na arte; formas de presenças que se fazem visíveis (artes da presença) porque tão real e verdadeiro quanto o atual é o virtual e tão real e verdadeiro quanto o virtual é o atual. Cinema Shadow / Segundo.
Marcio Doctors
Rio de Janeiro, outubro de 2012
1 LAGNADO, Lisette. No texto, denominado “Obra da distância”, Lisette Lagnado, ao referi-se ao uso do corpo na obra de Laura Lima escreve: “Carne, eis em princípio o material básico do trabalho de Laura lima. Sua proposição se inicia com uma fórmula restritiva: Homem = carne / Mulher = carne. Esse gesto de equivalência denota a busca por um espaço real, uma já clássica vontade de superar o problema da representação, de renunciar ao enfoque antropomórfico da pintura e da escultura?. Esse texto, editado pela Casa Triângulo, foi impresso no pôster da exposição “Laura Lima’s Project Room”, que teve a curadoria de Octavio Zaya, e integrou a Feria de Arte ARCO, em Madri.
2 Muitos trabalhos de Laura Lima envolvem o corpo humano, mas também envolvem animais vivos como pombas, vacas e faisões. Estes últimos foram utilizados na obra que apresentou na exposição “Alegoria barroca na arte brasileira”, no CCBB, Rio de Janeiro, 2005. Muitos trabalhos não apresentam o corpo nu, ao contrário, ela usa o corpo como suporte para roupas especialmente criadas por ela, ou outros recursos como a maquiagem na exposição “To age”, realizada no Chapter Art Centre, em Cardiff (2004), em que todas as pessoas que trabalhavam na instituição foram envelhecidas como recursos de maquiagem. O que interessa à artista é trabalhar com o corpo como o limite irredutível do real. Especificamente sobre o trabalho To age ver texto de Fernando Cocchiarale no folder “Instâncias/To age de Laura Lima”, Chapter Art Centre, Cardiff, País de Gales, 2004.
3 BASBAUM, Ricardo. A artista como predadora. TRANS 2000. Junho de 2000.
4 Jogo aberto, performance realizada por Claudia Bakker e Cristina Pape, na exposição “Orlândia”, Rio de Janeiro, 2001. A performance consistia num jogo de biriba em que uma artista jogava no jogo da outra. A jogadora não podia ver as cartas da própria mão, que estavam viradas para a opositora, o que permitia que uma jogasse no jogo da outra. Ao mesmo tempo era servido um peixe assado e vinho para que as artistas e o público, que acompanhava o jogo, pudessem comer e beber.
5 O mágico nu (2008-2010), obra apresentada na exposição “Grande”, Casa França-Brasil, Rio de Janeiro, 2010. Nesta obra o mágico tinha as mangas arregaçadas para mostrar que não havia nenhum truque escondido na manga. É uma imagem alegórica do artista, e Felipe Scovino faz uma análise instigante e precisa desta e das outras obras que participaram da exposição no texto do catálogo “Arquitetura de pele”.
6 Há uma declaração de Laura Lima, em uma entrevista feita por Felipe Scovino para o folder da exposição “Grande” (Casa França- Brasil, op. cit.), em que ela aborda a questão de quem pertence o olhar, que reforça a minha percepção de como a artista constitui a imagem na sua obra: estamos sempre presentes na paisagem, se olhamos contemplativamente o olhar pertence a ela. Neste aspecto, os nômades sugerem estar diante e estar por detrás, sermos nelas e sermos elas […] nômades sempre se deslocam em paisagens e são paisagem, nômades tempestade, nômades calmaria, nômades desertos, nômades sombras e floresta. Paisagens com temperamento.
7 DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? 2ª ed. Trad. Bento Prado Júnior e Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: 34, 1997. Termo cunhado pelos autores para definir o que é uma obra de arte e sua percepção. Ver especialmente capítulo intitulado “Afecto, percepto e conceito”.
8 DELEUZE, Gilles e GUATARRI, Félix. O que é a filosofia? Op. cit., p. 223.
9 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas, uma arqueologia das ciências humanas. Trad. António Ramos Rosa. São Paulo: Martins Fontes, s/d.
10 BERGSON, Henri. A energia espiritual. Trad. Rosemary Costhek Abílio. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
Fotografia: Mario Grisolli