Rosangela
Rennó


CÍRCULO MÁGICO

18ª edição
26 de abril a 29 de junho de 2014

O Círculo mágico de Rosângela Rennó

“O que vemos não é mais do que a terra deserta, mas essa terra deserta é como grávida daquilo que ela tem debaixo. E vocês me dirão: mas o que sabemos daquilo que ela tem debaixo? Ora, justamente aquilo de que nos fala a voz.” (Gilles Deleuze)

Há hoje um discurso reiteradamente dominante, que nos sobrevoa a todos, de que atravessamos o mundo sem percebê-lo devido ao excesso de estímulos. O mundo nos passa desapercebidamente. Vemos sem enxergar. Ouvimos sem escutar. Falamos sem refletir. Atravessa-se o mundo como se estivéssemos anestesiados; autômatos refratários. O mundo real apresenta-se como vidraça baça ou como lente despolida.

A importância do artista nos dias de hoje é que, ao lado dos filósofos ou dos sábios prenhes de vida, fazem a terra estremecer, as águas ficarem revoltas, desembaçando as vidraças e polindo as lentes do mundo e nos pondo em contato direto com as intensidades da vida. Os artistas hoje são cada vez mais necessários porque são eles que fazem a terra se abrir e permitem a germinação da semente do que está vivo e atento. Com a arte, o mundo pode ganhar sentimento e sentido. Por isso, tantos jovens hoje desejam tornar-se artistas. Anseiam por estar mais próximos das intensidades da vida; percebem que, por detrás da baça vidraça, existe um mundo onde o mistério metafísico é imanente e transparente; e o próprio mercado hoje reconhece esse movimento do espírito, manipulando a ilusão dos jovens, ao transformar a arte no produto de maior valor agregado, desfazendo e confundindo, de certa maneira na contramão, a possibilidade de uma vida menos embaçada e mais transparente.

Mas quais são as relações possíveis de um museu e da intervenção de Rosângela Rennó, especialmente criada para o Projeto Respiração, com essa questão?

O museu é repositório de objetos de arte, que traduzem a história material e espiritual dos homens. Na Fundação Eva Klabin, por exemplo, o que temos é uma coleção que traduz o olhar da sua fundadora, que reuniu em sua casa não só uma coleção de objetos de arte, como também o espírito de uma época e uma forma de viver, que era a sua. O que Eva Klabin nos apresenta e nos convida a conhecer é a atenção que dispensou a cada um desses objetos no momento de sua compra, que é o momento da escolha. O que ela nos indica é que o cuidado e a atenção são partes constituintes de sua ou de qualquer outra coleção. Esse momento final de “captura”, quando o objeto de arte é retirado do mercado por meio da compra e aprisionado no círculo mágico – ao qual se refere Walter Benjamin no seu texto desempacotando minha biblioteca: um discurso sobre o colecionador -, representa o final de uma trajetória na qual, a partir do momento da compra, a obra de arte passa a ficar congelada numa existência fora do tempo das trocas comerciais. No caso específico da Fundação Eva Klabin, esse movimento se intensifica na medida em que as obras de arte aqui expostas obedecem a um sentido de conjunto instaurado por sua idealizadora, que é conservado através da manutenção da sua residência: espaço em que ela viveu e conviveu com sua coleção.

Apesar de ser uma coleção eclética, o sentido de harmonia estabelecido pela disposição determinada pela colecionadora ao conjunto do acervo é passível de produzir “anestesia” do olhar, que é desencadeada pela opulência do requinte que se impõe ao visitante, como também e principalmente pela desatenção naturalizada do mundo contemporâneo. O clarão do conjunto harmonioso nos cega em relação ao específico de cada objeto. E é exatamente a ideia da singularidade que cada objeto carrega consigo que é a matéria sobre a qual Rosângela Rennó desenvolve sua intervenção.

A artista cria um dispositivo sonoro-luminoso que, através do som, nos faz ver o que está por debaixo da coleção, desencadeando de forma bem-humorada a fala da “memória” do objeto a partir de sua história enquanto objeto e a sua inserção no conjunto mais amplo da coleção. Rosângela Rennó define assim a sua participação no Projeto Respiração:

“O mais importante, na verdade, é colocar os objetos para falar e contar algo sobre si próprios. Em vários casos, eles comentam a sua nova posição na coleção; em outros, comentam sua existência de objeto e seu papel no Circulo mágico criado por Eva Klabin.”

A artista é plenamente consciente da importância da história e do que a história carrega consigo. O Círculo mágico estabelecido por ela diz mais respeito ao “presente” que a história pode provocar do que ao “passado” que a trajetória da memória pode desencadear. Rosângela Rennó encontra, através dos objetos da coleção Eva Klabin, a possibilidade de voltar sua atenção para a história não como manifestação descolada do passado no presente, mas como se esses objetos trouxessem em seus presentes manifestos a densidade das camadas do passado do seu estado de pertencer a uma coleção. Por isso eles falam. Falam daquilo que está por debaixo do que vemos. E a voz é o elo que nos une a eles. Seus passados se revelam na medida em que se fazem presentes aos nossos sentidos. Como num clarão, evidenciam a concomitância do passado e do presente na atualidade, inconformados de serem prisioneiros da visibilidade, que os silencia na história contada pela história da arte. Eles desejam ser a voz viva da história da sua condição. É como se ela atribuísse a eles o poder de revolver a superfície da coleção Eva Klabin e fazer emergir através de suas histórias o tempo denso da atualidade que suas existências impõem através de suas presenças. O passado deixa de ser latente para ser explicitamente real.

A intervenção de Rosângela Rennó nos surpreende por revelar “o fato de a história ser tão interessante pela própria razão de ter tudo atrás dela e com ela.”* Com esse trabalho, ela exercita uma crítica fortíssima ao momento atual da arte, assim como fez na 29ª Bienal de São Paulo com o trabalho Menos-valia [leilão], quando fez uma crítica mordaz ao mercado de arte. O que ela está questionando e criticando agora é outro aspecto do mercado, que é o de incentivar a prática da arte do novo pelo novo, como se a arte pudesse ser descolada da história da arte.

Longe de a artista propor um comportamento niilista pós-moderno de fim de história, que repete o passado por falta de perspectiva, ao contrário, ela nos indica de maneira quase singela que a história não é separada do presente; que a história da arte é tão interessante pela própria razão de ter tudo atrás dela e com ela; e que pode ter humor. Ela reivindica com seus objetos de arte falantes esse lugar da história e sugere que nosso olhar se volte para o passado, descobrindo sua potência de presente e sua capacidade de desencadear uma imensidão de possibilidades soterradas pela ação da busca desenfreada e doentia da novidade pela novidade nas sociedades contemporâneas.

A 18ª edição do Projeto Respiração recupera para a Fundação Eva Klabin uma relação mais próxima com a história da sua coleção através de obras que a artista selecionou entre as menos evidentes ou mais “tímidas”, nas suas palavras, “como também por algumas características históricas e alguns fatos relacionados à sua existência ou ao seu processo de aquisição. Cada escolha teve sua razão específica, muitas delas de caráter subjetivo”. Dessa maneira, Rosângela Rennó nos convida a deixarmos a urgência de lado e nos permitirmos ter mais atenção para podermos nos aproximar de uma experiência de tempo dilatado em que a história da arte se apresenta não como passado descolado do tempo, mas como um bloco de tempo constituído e constituinte de pura atualidade. Esse é o Círculo mágico da casa-museu de Eva Klabin. Esse é Círculo mágico do Projeto Respiração. Esse é o Círculo mágico de Rosângela Rennó.

Marcio Doctors

Fotografia: Mario Grisolli